Giorgio Agamben

 



      Os nossos sonhos não podem ver-nos - e esta é a tragédia da utopia. A confusão entre personagem e leitor - boa regra de toda a leitura - deveria funcionar também aqui. Acontece, porém, que o importante não é tanto aprender a viver os nossos sonhos, mas sim que eles aprendam a ler a nossa vida.

      in, Ideia da Prosa, trad. João Barrento, telas de Dali


Joaquim Manuel Magalhães

 


Vai chegar a manhã. 

A luz treme nos arbustos.

Algas, seixos, limos guiam pelas fragas

a água sem fundura, o ardor levantino do anil.


Ouves correr poalhas de bruma?

Silêncios do vento que renasce?


Seguro na mão que não seguras:

uma lâmina de fogo, um erro de árvores e olhas-me.


Pouso os lábios no teu pulso para sentir o coração.

É tão perigoso ser feliz.


   in, Uma luz com um toldo vermelho


Mestre Elomar Figueira Mello - Cavaleiro do São Joaquim por Susana Travassos



 

Caminhando eu vou nesta estrada sem fim

Levando meu mocó de saudade e esperanças

Que a vida juntou pra mim e no peito uma dor sem fim.


Lembro de uma canção que ela cantava pra mim

Um trem numa estação que partiu levando o bem derradeiro

E só deixou no meu peito uma grande dor.


Sonho que na derradeira curva do caminho

Existe um lugar sem dor, sem pedra, sem espinhos

Mas se de repente lá chegando não encontrar

Seguirei em frente caminhando a procurar.


Caminhante tão só vejo a terra ruim

O Sol tudo queimou a lagoa virou pó

E os rebanhos estão caindo vêm mugindo atrás de mim.


Cavandante eu sou por este reino sem fim

Meu cavalo voou procurando um lugar que minha avó contava pra mim

Meu menino do São Joaquim, cavaleiro do São Joaquim.


      Elomar Figueira Mello nasceu em Vitória da Conquista, 1937, e é compositor, escritor, violonista e cantor brasileiro. As canções de Elomar já foram regravadas e interpretadas por diversos cantores, além de influenciar compositores como Caetano Veloso.

      A sua obra é marcada pela forte presença de variantes dialetais, arcaísmos e neologismos, formando uma linguagem muito característica fundada na oralidade sertaneja. As letras abrangem uma ampla gama de temas, na maior parte das vezes vinculados ao imaginário rural do sertanejo nordestino, ainda que com elementos medievais, cristãos e ibéricos. A obra de Elomar vem sendo objeto de amplos estudos linguísticos, antropológicos e musicais.        

      In Wikipédia.

Marguerite Yourcenar

 

e tu,

vais-te embora? vais-te embora?...


não,

não te vais embora: fico contigo…


deixas-me nas mãos a tua alma,

como um casaco.


 

trad. de Maria da Graça Morais Sarmento

Photo



Where is John Lennon?

José Saramago

 


"Ligue-me quando quiser,

quando o desejo surgir como um vento espontâneo,

não como quem cumpre uma obrigação,

pois nada seria mais cruel para você ou para mim.

Às vezes imagino quão sublime seria

se você me chamasse sem motivo,

como quem, com sede, busca a pureza de um copo d’água.

Mas sei que pedir isso seria um excesso,

pois jamais esperaria de você

a encenação de uma sede que não arde na sua alma."

Amalia Bautista - Desnudo de mujer



Para ti nunca fui más que un pedazo

de mármol. Esculpiste en él mi cuerpo,

un cuerpo de mujer blanco y hermoso,

en el que nunca viste más que piedra

y el orgullo, eso sí, de tu trabajo.


Jamás imaginaste que te amaba

y que me estremecía cuando, dulce,

moldeabas mis senos y mis hombros,

o alisabas mis muslos y mi vientre.


Hoy estoy en un parque, donde sufro

los rigores del frío en el invierno,

y en verano me abraso de tal modo

que ni siquiera los gorriones vienen

a posarse en mis manos porque queman.


Pero, de todo, lo que más me duele

es bajar la cabeza y ver la placa:

"Desnudo de mujer", como otras muchas.

Ni de ponerme un nombre te acordaste.


   Nu de mulher


Nunca fui mais para ti do que um pedaço

de mármore, em que esculpiste o meu corpo,

um corpo de mulher branco e belo,

onde nunca viste mais do que pedra

e o orgulho, isso sim, do teu trabalho.


Nunca imaginaste como eu te amava

e que estremecia quando, suave,

me moldavas os seios e os ombros,

ou me alisavas os músculos e o ventre.


Hoje estou num parque, onde sofro

os rigores do frio no Inverno

e ardo no Verão de tal modo

que nem mesmo os pardais me vêm

pousar nas mãos porque escaldam.


De tudo, porém, o que me dói mais

é baixar a cabeça e reparar na placa:

"Nu de mulher", como muitas outras.

Nem de me dar um nome te lembraste.


trad. A.M.


      E se as estátuas pensassem e sentissem, como um livro que berrasse com o escritor, ou uma tela com o pintor? Que diria a Leiteira a Vermeer? A Ofélia a Shakespeare? A Bernarda Alba a Lorca?


José Miguel Silva - Um

 

Elizabeth Champion


Cai um sino do pinheiro de natal.

Por muito menos se foge de casa

de seus pais. Agachados sob o leque

das hortênsias, descobrimos que as lágrimas

são fáceis de engolir. Sem saber,

já chegamos ao escuro.

Só nos falta pôr o til na palavra solidão.


      in, vista para um pátio seguido de desordem


Albert Camus


      Raoof Hgghighi


      "Durante milénios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distração mais perfeita. O número dos «desinteressados» era vertiginoso em comparação com o dos interessados. O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distração geral e uma coisa compensava a outra. Hoje, toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado."

   in, citações

trad. António Ramos Rosa

      O Sr. Camus não teve a sorte e o azar de viver em 2024. Apesar de Bob Dylan nos anos 60 se cansar de cantar "How many times must a man turn his head pretending he just doesn't see, how many times must a man look up before he can see the sky", uma parte do mundo finge que não vê Gaza, outra parte finge que não vê a Ucrânia. E andamos nisto. Como dizia Leonard Cohen "Pacifism delights the heart of the killers". Do edifício das Nações Unidas já só existem os jardins.


Mariza - Casa



Vim de longe para estar perto fiz por ti esta viagem

Pois no meu caso concreto tu és toda a bagagem

De uma vida feita a dois e da saudade por matar

Num mundo que vai perdido és tu quem lhe dá sentido

e eu me dou para te encontrar.


Espera-me em casa meu amor seja ela onde for

Se tu estás é perfeito só assim

és o tecto e o chão que piso e tudo

aquilo que há em mim

Espera-me em casa meu amor seja ela onde for

Eu irei contra ventos e marés sou quem sou por seres quem és.


Vem dar por vencida a distância entre nós

e por mais que o tempo vá esquecendo a tua voz

Eu farei por sempre me lembrar

desta nossa vida onde tudo corre louco

e de uma rotina que teima em saber a pouco

se eu não te vejo ao chegar.


      Precisamos uns dos outros para mais e melhor nos conhecermos a nós próprios. À luz e à sombra que nos faz ser o que somos. É através dos relacionamentos que, ao longo da vida, nos vão sendo proporcionados, que podemos tomar consciência do que já somos e também do que ainda temos de trabalhar em nós.


Leonid Osipovich Pasternak - Alexander Pushkin by the Seashore



      Leonid Osipovich Pasternak, 1862-1945, foi um pintor russo pós-impressionista. Ele era o pai do poeta e romancista Boris Pasternak. Sim, o que escreveu sobre os amores de Zhivago e Lara Antipova.


Joseph Brodsky - Love Song

 


If you were drowning, I’d come to the rescue,

wrap you in my blanket and pour hot tea.

If I were a sheriff, I’d arrest you

and keep you in the cell under lock and key.


If you were a bird, I’d cut a record

and listen all night long to your high-pitched trill.

If I were a sergeant, you’d be my recruit,

and boy I can assure you you’d love the drill.


If you were Chinese, I’d learn the languages,

burn a lot of incense, wear funny clothes.

If you were a mirror, I’d storm the Ladies’,

give you my red lipstick and puff your nose.


If you loved volcanoes, I’d be lava

renlentlessly erupting from my hidden source.

And if you were my wife, I’d be your lover

because the church is firmly against divorce.


   Canção de Amor


Se estivesses a afogar-te, eu iria em tua salvação,

cobria-te com a minha manta e servia-te chá quente.

Se fosse chefe de polícia, prender-te-ia

e fechava-te a sete chaves numa cela.


Se fosses um pássaro, gravaria um disco

e escutaria toda a noite o teu trinar intenso.

Se eu fosse sargento, serias minha recruta

e posso dizer-te que adorarias a instrução.


Se fosses chinesa, aprenderia os idiomas,

queimava uma data de incenso, usaria roupa alegre.

Se fosses um espelho, assaltaria o banho das senhoras,

dar-te-ia o meu batom vermelho e empoava-te o nariz.


Se gostasses de vulcões, eu seria lava

irrompendo sem cessar do meu centro oculto.

E se fosses minha mulher, seria o teu amante,

porque a Igreja é firmemente contra o divórcio.


   Traduzido por Nuno Dempster.


      "Love Song" by Joseph Brodsky is a powerful and moving poem that celebrates the transformative power of love. The poem's use of vivid imagery and lyrical language creates a musical and romantic tone, capturing the essence of the speaker's love for his beloved. The poem's central message, that love has the power to heal and transform, is one that resonates with readers and has helped make it a beloved and widely anthologized work of poetry.


Tonino Guerra - Saudade

 

Eu sei, eu sei, eu sei

que um homem, aos 50 anos,

tem sempre as mãos limpas

e eu lavo-as duas ou três vezes por dia

mas é quando vejo as mãos sujas

que me recordo do tempo

de garoto.


Kabir, 1440-1518

 


Em todas as coisas se acendem as luzes

Como és cego não as consegues ver

Um dia os teus olhos abrir-se-ão e verás

As algemas da morte cairão por si sós

Nada a dizer nada a escutar nada a fazer

Aquele que vive ainda que morto

não morrerá nunca

Por que vive na solidão

o asceta diz que a sua casa fica longe

O teu sonho está junto a ti

Porque sobes ao alto da palmeira para encontrá-lo

ou te pões a adorar a pedra

que tu mesmo levantaste?


Versão de Joge Sousa Braga


      Kabir, 1440-1518, foi um dos grandes poetas místicos da Índia medieval, cujos escritos influenciaram o hinduísmo. Também é conhecido por ser crítico tanto do hinduísmo como do islamismo, ao defender que foram mal orientados pelos Vedas, questionando a hipocrisia e os rituais de iniciação sem significado, evidentes em várias práticas religiosas da época. Durante a vida, ele foi ameaçado tanto por hindus quanto por muçulmanos. Este poema desperta para o encontro com o sagrado.


Bruno Liljefors



      Bruno Liljefors, born 1860, was a Swedish artist. He is perhaps best known for his nature and animal motifs, especially with dramatic situations. He was the most important and probably most influential Swedish wildlife painter of the late nineteenth and early twentieth century. He also drew some sequential picture stories, making him one of the early Swedish comic creators.


Gareth Owen - Sem empreghabilidade

 


"Eu eshtumava tabalhá no cicu",

disse ele

por entre as saraivadas de gafanhotos expelidos pela sua boca.

"Oh", disse eu, "e o que fazia?"

"Eu eshtumava apanhá balash cosh dentsh".


      John Gareth Owen, born 1936, in Ainsdale, Lancashire, England and died 2002, in Cardiff, Wales. Writer, actor, and director. Worked variously as a factory worker, gardener, bookseller, secondary school teacher in Ilford, teacher of drama at a teachers' training college, Birmingham. He ran poetry workshops in schools and gave readings at festivals and colleges and on BBC radio.


Lisel Mueller - De passagem

 


Quão ligeiro o mel cansado

da luz crepuscular

se faz noite


e o botão se recolhe

em particular mistério

para vir a ser flor


como se quanto existe

existisse para ser perdido

e tornar-se precioso.


  In Passing


How swiftly the strained honey

of afternoon light

flows into darkness


and the closed bud shrugs off

its special mystery

in order to break into blossom


as if what exists, exists

so that it can be lost

and become precious


      Poema de sensibilidade fina. O por do sol igual ao mistério da vida, onde a morte espera devagarinho o outro dia. 


Les Rohmériennes - Georges Brassens, Les Passantes




      Pedaçinhos de films de Eric Rohmer : Ma Nuit chez Maud, Le Rayon Vert, Conte d'Automne, La Collectionneuse, Pauline à la plage, L'Amour l'après-midi, La Boulangère de Monceau, Conte de Printemps, Les Nuits de la pleine Lune, Le Genou de Claire, L'Ami de mon amie, La Femme de l'Aviateur, Conte d'hiver, Conte d'été, L'Amour l'après-midi, 4 Aventures de Reinette et Mirabelle, L'Ami de mon amie.

   Paroles "Les Passantes"


Je veux dédier ce poème

À toutes les femmes qu'on aime

Pendant quelques instants secrets

À celles qu'on connaît à peine

Qu'un destin différent entraîne

Et qu'on ne retrouve jamais


À celle qu'on voit apparaître

Une seconde à sa fenêtre

Et qui, preste, s'évanouit

Mais dont la svelte silhouette

Est si gracieuse et fluette

Qu'on en demeure épanoui


À la compagne de voyage

Dont les yeux, charmant paysage

Font paraître court le chemin

Qu'on est seul, peut-être, à comprendre

Et qu'on laisse pourtant descendre

Sans avoir effleuré la main


À celles qui sont déjà prises

Et qui, vivant des heures grises

Près d'un être trop différent

Vous ont, inutile folie

Laissé voir la mélancolie

D'un avenir désespérant


Chères images aperçues

Espérances d'un jour déçues

Vous serez dans l'oubli demain

Pour peu que le bonheur survienne

Il est rare qu'on se souvienne

Des épisodes du chemin


Mais si l'on a manqué sa vie

On songe avec un peu d'envie

À tous ces bonheurs entrevus

Aux baisers qu'on n'osa pas prendre

Aux cœurs qui doivent vous attendre

Aux yeux qu'on n'a jamais revus


Alors, aux soirs de lassitude

Tout en peuplant sa solitude

Des fantômes du souvenir

On pleure les lèvres absentes

De toutes ces belles passantes

Que l'on n'a pas su retenir.


       Je reste toujours ému de vous écouter Georges.


Claude Monet at Pourville



      In February 1882, Claude Monet went to Normandy to paint, one of many such expeditions that he made in the 1880s. This was also a retreat from personal and professional pressures. His wife, Camille, had died three years earlier, and Monet had entered into a domestic arrangement with Alice Hoschedé (whom he would marry in 1892, after her husband’s death). France was in the midst of a lengthy economic recession that affected Monet’s sales.


Ana Blandiana - Sempre



Sonhei em estar sozinha

porque havia sempre

muita gente à minha volta.

Só tu eras eu.

Só tu renunciavas ao plural,

ao múltiplo de dois,

Só tu sabias construir uma solidão

em que havia espaço para nós os dois.


      Ana Blandiana é o pseudónimo de Otília Valeria Coman, poetisa, ensaísta e mulher política romena. É considerada uma das principais autoras contemporâneas do seu país. Escolheu o nome literário em homenagem a Blandiana, lugarejo perto de Vințu de Jos, concelho de Alba, onde se localiza a aldeia da casa de sua mãe. O poema é um monólogo dramático consigo mesma. A tradução é de Maria Sousa.


Emanuela Laura Grigoriu

 


      "Quando feres pessoas de bom coração, elas não gritam. Em vez disso, guardam a dor em silêncio, afastando-se discretamente até desaparecerem de vez. Não deixam de ser boas, mas jamais voltarão a confiar em ti. É nesse instante, sem perceberes, que realmente as perdeste."

      "When you hurt good-hearted people, they won't scream, they'll keep their pain inside. They will gently and silently drift away never to return. They won't stop being good, they'll never trust you again. This is exactly when you lost them."

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