Lugar


 
Achei! É aqui que Deus vive.

Donna Ashworth

 


      Quando finalmente percebes que a alegria não é um espetáculo de fogos de artifício, mas o suave piscar de um pirilampo; que ela não é uma orquestra estrondosa, mas o sussurro de um canto de pássaros ao amanhecer — então ela passa a visitar-te mais vezes. A alegria não compete com o frenético ritmo da vida; ela não se esgota no brilho ou na novidade. Ela encontra fôlego no essencial, reluz no simples e dança no cotidiano.

      Há anos, meu amigo, a alegria tem acenado. Estavas ocupado demais, para perceber. Da próxima vez que ela se envolver ao teu redor com o calor sereno de um abraço, enquanto o jardim acolhe o teu corpo cansado, oferece-lhe uma receção calorosa. Não podes forçá-la a ficar, mas, se fores um anfitrião generoso, a alegria sempre encontrará o caminho de volta.

      A tela é de Nicolet Boon

Rainer Maria Rilke - A Rosa

 

Não falemos de ti. És inefável

segundo a tua natureza.

Outras flores ornamentam a mesa:

tu a transfiguras.


Num simples vaso és arranjo,

e eis que tudo muda:

é talvez a mesma frase,

mas cantada por um anjo.


Carmen Aciar - Mediterráneo

 


Quizá porque mi niñez sigue jugando en tu playa

Escondido tras las cañas duerme mi primer amor

Llevo tu luz y tu olor por donde quiera que vaya

Y amontonao en tu arena.


Tengo amor, juegos y penas, yo

Que en la piel tengo el sabor amargo del llanto eterno

Que han vertido en ti cien pueblos de Algeciras a Estambul

Para que pintes de azul tus largas noches de invierno.


Y a fuerza de desventuras

Tu alma es profunda y oscura

Y a tus atardeceres rojos se acostumbraron mis ojos

Como el recodo al caminho.


Soy cantor, soy embustero, me gusta el juego y el vino

Tengo alma de marinero

¿Qué me voy a hacer?, si yo

Nací en el Mediterráneo.


Y te acercas y te vas después de besar mi aldea

Jugando con la marea, te vas pensando en volver

Eres como una mujer perfumadita de brea

Que se añora y que se quiere.


Que se conoce y se teme, ay

Si un día para mi mal viene a buscarme la parca

Empujad al mar mi barca con un Levante otoñal

Y dejad que el temporal desguace sus alas blancas.


Y a mí enterradme sin duelo

Entre la playa y el cielo

En la ladera de un monte más alto que el horizonte

Quiero tener buena vista.


Mi cuerpo será camino, le daré verde a los pinos

Y amarillo a la genista

Cerca del mar porque yo

Nací en el Mediterráneo.


      Mediterráneo is the eighth studio album by Joan Manuel Serrat, released in 1971. It is considered by critics and audiences as one of the best albums in the history of Spanish music. Here's an intimist cover by Carmen Aciar, a young singer-songwriter from Mendoza (Argentina), who has been living in Barcelona recently.


Henk Helmantel



      "Ring the bells that still can ring, forget your perfect offering, there is a crack, a crack in everything, that’s how the light gets in." We miss you Leonard. 

 

Rosa Lobato de Faria



Afirmas que brigámos. Que foi grave.

Que o que dissemos já não tem perdão.

Que vais deixar aí a tua chave

e pesar a mala da cave com a tua mão.


Mas como destrinçar os nossos bens?

Que livro? Que lembranças? Que papel?

Os meus olhos, bem vês, és tu que os tens.

Não te devolvo – é minha! – a tua pele.


Achei ali um sonho muito velho,

não sei se o queres levar, já está no fio.

E o teu casaco roto, aquele vermelho

que eu costumo vestir quando está frio?


E a planta que eu comprei e tu regavas?

E o sol que dá no quarto de manhã?

É meu o teu cachorro que eu tratava?

É teu o meu canteiro de hortelã?


A qual de nós pertence este destino?

Este beijo era meu? Ou já não era?

E o que faço das praias que não vimos?

Das marés que estão lá à nossa espera?


Dividimos ao meio as madrugadas?

E a falésia das tardes de Novembro?

E as sonatas que ouvimos de mãos dadas?


De quem é esta briga? Não me lembro.

Tonino Guerra

 


Terá chovido durante cem dias e a água infiltrada

pelas raízes das ervas

chegou à biblioteca banhando as palavras santas

guardadas no convento.


Quando tornou o bom tempo,

Sajat-Novà o frade mais jovem

levou os livros todos por uma escada até ao telhado

e abriu-os ao sol para que o ar quente

enxugasse o papel molhado.


Um mês de boa estação passou

e o frade de joelhos no claustro

esperava dos livros um sinal de vida.

Uma manhã finalmente as páginas começaram

a ondular ligeiras no sopro do vento

parecia que tinha chegado um enxame aos telhados

e ele chorava porque os livros falavam.


    in, O Mel

Paul Claudel - Cem frases para leques

 


Tu

chamas-me Rosa

diz a Rosa

mas se tu soubesses

o meu verdadeiro nome

logo eu

me desfolharia.


  Tradução de David Mourão Ferreira

Berthold Woltze - The Annoying Gentleman

 


      Berthold Woltze was a German genre painter that depicted everyday scenes, but he was also known for the type of paintings known as "problem paintings". These consisted of subject matter with mysterious narratives that left the viewer wondering or guessing about what was happening. 

      This is what you see in The Irritating Gentleman. A young girl appears sad, dressed in black, she may have been on her way to, or coming back from a funeral. She also travels alone in a railway carriage. There is a sense of discomfort in this painting, caused by the man who is talking to her, but not aware that he is overstepping her boundaries.


Hart Crane - Carta do mensageiro

 

As minhas mãos não tocaram água desde que as tuas mãos,-

Não; - nem os meus lábios voltaram a libertar o riso desde o "adeus".

E, com o tempo, a distância novamente

interpõe-se entre nós, muda como uma concha desfeita.


Contudo, - muito se segue, muito perdura e confia apenas nos pássaros:

as asas de uma pomba fecharam-se sobre o meu coração a noite passada

com uma suavidade urgente; e a pedra azul

do anel da promessa tem brilhado desde então muito mais.


Edgar Lee Masters - Cassius Hueffer

 


Esculpiram na minha lápide as seguintes palavras:

«Foi gentil a sua vida, e de tal modo se combinaram nele os elementos

que poderia a natureza levantar-se e dizer ao mundo

este foi um homem.»

Quem me conheceu sorri

ao ler esta retórica vazia.


O meu epitáfio devia ter sido:

«Não foi gentil com ele a vida,

e de tal modo se combinaram nele os elementos

que à vida moveu guerra

e nessa guerra foi assassinado.»

Toda a minha vida odiei a calúnia:

e agora que estou morto tenho que suportar um epitáfio

gravado por um asno!


in, Spoon River, tradução José Miguel Silva

Dear Prudence covered on the guitar by Josh Turner



      Nunca apreciei muito esta canção. Na juventude, quando ouvia o Álbum Branco, depois do Back in the USSR, costumava dar um salto na agulha. Depois li, que  Lennon escreveu a canção em Rishikesh, na Índia, onde os Beatles faziam um curso de meditação transcendental com o Maharishi Mahesh Yogi, de fevereiro a abril de 1968. Além deles, outras personalidades artísticas estavam presentes, como Mike Love dos Beach Boys e entre eles a atriz Mia Farrow, que levara consigo a irmã Prudence Farrow.  

      Prudence não participava das atividades do grupo, só queria ficar no bungalow a treinar meditação. Apesar das insistências, nada fazia com que ela saísse do enclausuramento. John, preocupado, tentou de qualquer maneira, sem sucesso, alegrar Prudence. Nada. Resolveu então, fazer esta canção para que ela abandonasse a sua solidão e viesse participar nas outras atividades do campo ("to come out to play"). Donovan Leitch ajudou com a sugestão de um dedilhar criativo, que John usaria mais tarde em muitas outras canções.

      Nota: Atualmente Prudence Farrow e o marido são professores e ambos continuam a praticar técnicas avançadas de meditação transcendental.

      Now to the cover by Josh: to paraphrase Mahler: "the classics don’t preserve the ashes, they preserve the fire!" Well done lads!


Arthur John Elsley



      A iniciação ao pecado. A, já antiga, doutrina que pretende explicar a origem da imperfeição humana, do sofrimento e da existência do mal através do não cumprimento de uma ordem de Deus. Cada um, à sua maneira, sobe à macieira.


Emanuel Jorge Botelho - Quase aforismo

 

percebi cedo que o mundo doía.

o medo ainda não tinha nome

quando lhe paguei, com lágrimas,

o primeiro dízimo.


depois, foi só crescer.


Rui Costa - Breve ensaio sobre a potência

 

4

as plantas treinam a paciência

dobrando mais os braços. doem

por cima das pedras, caminham

vagamente como animais sem

asas. as plantas respiram imitando

os peixes. mais tarde ancoram-se

à terra e voam rasurando a luz.


Eugénio de Andrade - Balança

 

No prato da balança um verso basta

para pesar no outro a minha vida.


Jessie Willcox Smith - A Child's Garden of Verses



      Jessie Willcox Smith, conhecida sobretudo pela ilustração de livros para a infância, nasceu em Filadélfia em 6 de Setembro de 1863 e morreu, naquela mesma cidade, no dia 3 de Maio de 1935. Alguns dos trabalhos são de uma beleza simples e limpa.


veias de linho

 


há algo de sagrado no fio que se desfaz

como se cada rasgo sussurrasse um adeus


o tecido guarda, em silêncio, as histórias

que não precisaram de voz para viver


um nó escondido, um ponto ausente

traçam a anatomia de uma perda invisível


e na fragilidade, encontra a força —

uma memória que não ousa render-se


   in, xilre

Mikołaj z Krakowa - Aleć nade mną Wenus



      Madrigal é um texto lírico com conteúdo amoroso, bucólico e pastoril. Esta forma de poema surgiu no século XIV, em Itália, musicado por trovadores. Alcançou popularidade e espalhou-se para outros países da Europa no século XVI.


Manuel António Pina - O Pássaro da cabeça

 


Sou o pássaro que canta

dentro da tua cabeça

que canta na tua garganta

canta onde lhe apeteça


Sou o pássaro que voa

dentro do teu coração

e do de qualquer pessoa

mesmo as que julgas que não


Sou o pássaro da imaginação

que voa até na prisão

e canta por tudo e por nada

mesmo com a boca fechada


E esta é a canção sem razão

que não serve para mais nada

senão para ser cantada

quando os amigos se vão


E ficas de novo sozinho

na solidão que começa

apenas com o passarinho

dentro da tua cabeça.


in, Carta a um jovem antes de ser Poeta


      Já me senti só como uma pedra fria na noite. E veio o orvalho, e veio o sol. No meio deles, voltei a ver o passarinho do Sr. Pina. 


Manuel Resende - Sai de casa

 


Rasga este poema depois de o leres.

E depois espalha os bocados

pelo vasto mundo

ou então na tua rua, vai à aldeia, à praia,

atira-o ao mar, deita-o ao lixo,

para que venha o vento, o sol, a chuva, os homens do lixo,

acabar com ele de vez.

Passado um dia,

sai de casa e procura

encontrá-lo de novo.


      Poeta do Porto, com sotaque do lugar, falecido em 2020. Um homem que ao comer uma cereja sentia que queria comer todas as cerejas do mundo. O poema desconstrói-se e renasce na necessidade de viver. 


O Jardim - Tiago Bettencourt e Carolina Torres



Quero-te regar, minha flor

Quero cuidar de ti

Deixa-me entrar no jardim

Deixa-me voltar a dormir.


Quero-te regar, minha flor

Dar-te de novo a paz que perdi

Quero desvendar a parte triste que há em ti

Deixa-me existir no espaço novo que encontraste em mim.


Não vês que é de nós o jardim que se fez

Não vês que é para nós o jardim que nos faz olhar

Que este frio faz tremer quem fica

E faz voltar o que tens e que é meu.


Porque é meu.


      Se sabemos cuidar de um jardim, não poderemos aprender a cuidar do outro, onde a imperfeição é, por vezes, tão perfeita!? Ontem fui escutar o Tiago, na ACERT, em Tondela e pedi-lhe que cantasse O Jardim e ele cantou.


Richard Ziegler - Die Polizei, 1929

 

      "Like no other place in Europe, Berlin was the centre of avant-gardist activities in the mid-twenties. The social barriers were gone and the artists‘ depicted a demoralized society that refused to subject to any regulations. The three naked people in this work, surrounded by gazers, squares and indifferent people, represent a society without values on the one hand, on the other hand it is a society that is unable to overcome its bourgeois background. The naive innocence of the three nudes is exposed to the aggression of the petit bourgeoisie. The question as to who gets the upper hand remains open, Ziegler‘s ambivalent depiction leaves that to the observer."

      in, Ketterer Kunst

Karmelo C. Iribarren - O que perdura [Lo que perdura]

 


Das cidades que visito

sempre trago comigo

alguma coisa:

    praças ao cair da tarde, o pulsar

de uma avenida à hora de ponta,

um bar diferente,

uma livraria

             e

(isto nunca me esquece)

                       os olhos,

os olhares fugazes

de uma mulher

desconhecida:

              misteriosos

rescaldos que perduram

entre as cinzas

de tudo o resto.

 

Traduções a partir do castelhano por Carlos Mendonça Lopes

Karmelo C. Iribarren - O verão aos 60

 

É como estar

a dieta

num bom restaurante;

uma tortura.


      Chega

e de repente

de todo o lado

surgem

coisas

e mais coisas apetitosas

que nunca

irás comer.

Karmelo C. Iribarren - Amor

 

Apenas

quatro letras.


E cabe tanto dentro.


E dói tanto

quando te deixam

fora.

Pink Floyd - Comfortably Numb by A.I.



      There are too many AI music videos on the Web. The number is growing too fast and too quick, but does AI respect the contents? This song describes a state of delirium, a feeling of being detached from reality. Roger Waters, who wrote the lyrics, said the song is about how he felt as a child when he was sick with a fever. As an adult, he got that feeling again sometimes under different circumstances. It is the voice of the doctor, who asks in the opening line, "Hello, is there anybody in there?" 

Carlos Drummond de Andrade - Os ombros suportam o mundo

 


Chega o tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Tempo em que não se diz mais: meu amor.

Porque o amor resultou inútil.

E os olhos não choram.

E as mãos tecem apenas o rude trabalho.

E o coração está seco.


Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.

Ficaste sozinho, a luz apagou-se,

mas na sombra os teus olhos resplandecem enormes.

És todo certeza, já não sabes sofrer.

E nada esperas dos teus amigos.


Pouco importa que venha a velhice, que é a velhice?

Os teus ombros suportam o mundo

e ele não pesa mais que a mão de uma criança.

As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios

provam apenas que a vida prossegue

e nem todos se libertaram ainda.

Alguns, achando bárbaro o espetáculo

prefeririam (os delicados) morrer.


Chegou o tempo em que não adianta morrer.

Chegou o tempo em que a vida é uma ordem.

A vida apenas, sem mistificação.


in, Sentimento do Mundo


      A beleza da vida está na mistificação: em Deus, no amor, arte, na civilização sem negar os lados. Eles são maiores que a verdade. De que nos vale um "coração seco"?

Søren Kierkegaard

 


      "Acima de tudo, nunca perca o desejo de caminhar. Todos os dias, caminho em direção a um estado de bem-estar, deixando para trás todos os fardos e doenças. Nos meus passos, encontro os meus pensamentos mais claros; não há peso tão grande que não possa ser aliviado pelo simples ato de caminhar. Ficar parado é convidar a estagnação, a doença e o enfraquecimento do espírito. Mas seguir em frente, continuar caminhando, é abraçar a vitalidade. Um passo de cada vez, tudo se encaixa."

Sick Mozart and Salieri composing Confutatis



      We are in 1791, and Mozart has been seriously ill for over a year. Since he believes he has been poisoned with Aqua Tofana (a very slow poison) and thus sensing his end, he decided to compose his own Requiem. The video is not only brilliant, it is magnificent.


Natália Correia - Ode à Paz

 


Pelas aves que voam no olhar de uma criança,

Pela limpeza do vento, pelos atos de pureza,

Pela alegria, pelo vinho, pela música, pela dança,

pela branda melodia do rumor dos regatos,

Pelo fulgor do estio, pelo azul do claro dia,

Pelas flores que esmaltam os campos, pelo sossego,

dos pastos,

Pela exatidão das rosas, pela Sabedoria,

Pelas pérolas que gotejam dos olhos dos amantes,

Pelos prodígios que são verdadeiros nos sonhos,

Pelo amor, pela liberdade, pelas coisas radiantes,

Pelos aromas maduros de suaves outonos,

Pela futura manhã dos grandes transparentes,

Pelas entranhas maternas e fecundas da terra,

Pelas lágrimas das mães a quem nuvens sangrentas

Arrebatam os filhos para a torpeza da guerra,

Eu te conjuro ó paz, eu te invoco ó benigna

Ó Santa, ó talismã contra a indústria feroz,

Com tuas mãos que abatem as bandeiras da ira,

Com o teu esconjuro da bomba e do algoz,

Abre as portas da História,

deixa passar a Vida!


   in, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias


      Dizia Leonard Cohen "Pacifism delights the hearts of the killers" (O pacifismo delicia o coração dos assassinos.) Faz-nos pensar.

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