António Gedeão - No declive do tempo

 


Conscientemente escrevo e, consciente,

medito o meu destino.

 

No declive do tempo os anos correm,

deslizam como a água, até que um dia

um possível leitor pega num livro

e lê,

lê displicentemente,

por mero acaso, sem saber porquê.

Lê, e sorri.

Sorri da construção do verso que destoa

no seu diferente ouvido;

sorri dos termos que o poeta usou

onde os fungos do tempo deixaram cheiro a mofo;

e sorri, quase ri, do íntimo sentido,

do latejar antigo

daquele corpo imóvel, exhumado

da vala do poema.

 

Na História Natural dos sentimentos

tudo se transformou.

 

O amor tem outras falas,

a dor outras arestas,

a esperança outros disfarces,

a raiva outros esgares.

Estendido sobre a página, exposto e descoberto,

exemplar curioso de um mundo ultrapassado,

é tudo quanto fica,

é tudo quanto resta

de um ser que entre outros seres

vagueou sobre a Terra.


      O grande medo da morte pode definir-se assim: "Como é que eu posso perder tanta beleza?", beleza essa, que continua noutras gerações e se transforma.

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