Fernando Luis Chivite - Esboço de uma mulher só

 

Ela sabe que há algo, intui

que há algo mais lá onde os outros

há já tempo que deixaram

de buscar.


De modo que espera que se afastem,

e não diz nada

quando ao entardecer lhe mostram

os seus achados no bar contentes

com a sua sorte.


Ela sabe que a melhor peça

continua ainda enterrada,

e quando todos se vão, mesmo o último,

ela volta atrás, subreptícia.


À luz da lua,

com os seus olhos de louca,

ajoelha-se e escava com as mãos.


Lembrete

 


    Mikhail Gorbachev escreveu no livro Perestroika “Se há algo que teremos de aprender com o passado é que nunca poderemos fazer os outros felizes à força.” 

O exemplo



    Foi por pouco. Pela bola que bate no poste, metáfora absoluta para tanto do que a vida nos dá, como a folha lenta que cai devagar. É de lá, muitas vezes, que nasce a lágrima — e é de lá que nasce também a ressignificação, a mudança.

                            Pedro Chagas Freitas

    1 de agosto de 2023, dia em que terminou a participação da seleção nacional feminina no campeonato do mundo na Nova Zelândia.


Vladimir Davidenko

 


 O belo e o destino.


El Otro - Jorge Luis Borges

 

 

No conto "O Outro" Borges tem uma conversa com ele mesmo.


Joaquim Manuel Magalhães

 


Juntamos toros e gravetos

para a lareira. Na mata

flutua o crepúsculo.

Marcos de luz a findar.


Vagas de zimbro, escórias,

o arpão do esquecimento.

A súbita melancolia da casa.


As janelas abrem para o rio

e a barra da ilha com névoa.

Podias ser tu de céu a céu.


A inquieta certeza da poesia

não admite questões. Descobre-se

ao virar da vinha, quando chegamos

ao tanque e não há ninguém.


Sophia de Mello Breyner Andresen - Ode à Maneira de Horácio

 


Feliz aquela que efabulou romance

Depois de o ter vivido

A que lavrou a terra e construiu a casa

Mas fiel ao canto estridente das sereias

Amou a errância o caçador e a caçada

E sob o fulgor da noite constelada

À beira da tenda partilhou o vinho e a vida


in, O Búzio de Cós e Outros Poemas


Joaquim Manuel Magalhães

 


Vai chegar a manhã.

A luz treme nos arbustos.

Algas, seixos, limos

guiam pelas fragas

a água sem fundura,

o ardor levantino do anil.


Ouves correr poalhas de bruma?

Silêncios do vento que renasce?


Seguro na mão que não seguras

uma lâmina de fogo, um erro

de árvores e olhas-me.


Pouso os lábios no teu pulso

para sentir o coração.

É tão perigoso ser feliz.


in, Uma Luz com um Toldo Vermelho


Emanuel Félix - Sinal

 


Ergo nas mãos em concha

uma lembrança de água

oh, presença subtil no deserto de um livro

a que uma folha dura

 

E que frágeis os trincos da memória

do que era teu e meu

a invisível tesoura

com que cortar os sonhos pela cintura.


Paul and John - I've Got A Feeling

 

 

      John could have also been on that stage with Paul as an old man, but instead he is forever frozen in his youth. When both sang together on stage someone started to cry. It's emotional because "a thing of beauty is a joy forever". 


Sir Frederic William Burton


 
Saber com o sabor da maçã.

Sidónio Muralha - Roteiro

 


Parar. Parar não paro.

Esquecer. Esquecer não esqueço.

Se carácter custa caro

pago o preço.


Pago embora seja raro.

Mas homem não tem avesso

e o peso da pedra eu comparo

à força do arremesso.


Um rio, só se for claro.

Correr, sim, mas sem tropeço.

Mas se tropeçar não paro

- não paro nem mereço.


E que ninguém me dê amparo

nem me pergunte se padeço.

Não sou nem serei avaro

- se carácter custa caro

pago o preço.


Eugénio de Andrade na morte de Miguel Torga

 


Não sei


Não sei porque diabo escolheste

janeiro para morrer: a terra

está tão fria.


É muito tarde para as lentas

narrativas do coração,

o vento continua

a tarefa das folhas:

cobre o chão de esquecimento.


Eu sei: tu querias durar.

Pelo menos durar tanto como o tronco

da oliveira que o teu avô

tinha no quintal. Paciência,

querido, também Mozart morreu.


Só a morte é imortal.


Eugénio de Andrade - A Sílaba

 


Toda a manhã procurei uma sílaba.

É pouca coisa, é certo: uma vogal,

uma consoante, quase nada.

Mas faz-me falta. Só eu sei

a falta que me faz.

Por isso a procurava com obstinação.

Só ela me podia defender

do frio de janeiro, da estiagem

do verão. Uma sílaba.

Uma única sílaba.

A salvação.


Manuel António Pina - Esplanada

 


Naquele tempo falavas muito de perfeição,

da prosa dos versos irregulares

onde cantam os sentimentos irregulares.

Envelhecemos todos, tu, eu e a discussão,


agora lês saramagos & coisas assim

e eu já não fico a ouvir-te como antigamente

olhando as tuas pernas que subiam lentamente

até um sítio escuro dentro de mim.


O café agora é um banco, tu professora de liceu;

Bob Dylan encheu-se de dinheiro, o Che morreu.

Agora as tuas pernas são coisas úteis, andantes,

e não caminhos por andar como dantes.


M. J. Marmelo - Os Poetas

 


De todas as vezes que morre um poeta há

um raio de sol a menos nas arestas da manhã.

O mundo envelhece um pouco: os poetas

nunca têm o tempo das suas articulações, mas

somente a idade de quando são crianças.

Se escrevem, é por não serem já capazes

de correr atrás de uma bola, de um papagaio

de papel. Depois vão embora tristes

de não poderem, outra vez, caçar a esquiva

borboleta das palavras.


Ralf Heynen



Iniciação ao outono, à outra parte da vida.


Ruy Belo - E tudo era possível

 


Na minha juventude antes de ter saído

da casa de meus pais disposto a viajar

eu conhecia já o rebentar do mar

das páginas dos livros que já tinha lido


Chegava o mês de maio era tudo florido

o rolo das manhãs punha-se a circular

e era só ouvir o sonhador falar

da vida como se ela houvesse acontecido


E tudo se passava numa outra vida

e havia para as coisas sempre uma saída

Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer


Só sei que tinha o poder duma criança

entre as coisas e mim havia vizinhança

e tudo era possível era só querer.


Salvatore Quasimodo

 


Cada um está só sobre o coração da terra

Trespassado por um raio de sol:

E de repente é noite.


  Tradução: Ernesto Sampaio


The Paper Kites - Bloom

 


 

In the morning when I wake

And the sun is coming through

Oh, you fill my lungs with sweetness

And you fill my head with you.


Shall I write it in a letter?

Shall I try to get it down?

Oh you fill my head with pieces

Of a song I can't get out.


Can I be close to you?


Can I take you to a moment

Where the fields are painted gold?

And the trees are filled with memories

Of the feelings never told.


When the evening pulls the sun down

And the day is almost through

Oh the whole world it is sleeping

But my world is you.


      I didn't know this song of love. I don't know how it came to me.


Após a escuridão

 



São as palavras que brilham no olhar.

A luz é um sublinhado.


in, xilre


Vasko Popa - Canção da verdade jovem



 

A verdade cantava no escuro

No cimo da tília sobre o coração


O sol há-de amadurecer dizia

No cimo da tília sobre o coração

Se os olhos o iluminarem


Troçamos da canção

Agarrámos prendemos a verdade

Cortámos-lhe a cabeça de baixo da tília


Os olhos estavam noutro sítio

Ocupados com outra obscuridade

E nada viram


Trad. Eugénio de Andrade


Vicente Augusto de Carvalho



"Deixa-me, fonte!" Dizia

A flor, tonta de terror.

E a fonte, sonora e fria,

Cantava, levando a flor.


"Deixa-me, deixa-me, fonte!

" Dizia a flor a chorar:

"Eu fui nascida no monte...

"Não me leves para o mar".


E a fonte, rápida e fria,

Com um sussurro zombador,

Por sobre a areia corria,

Corria levando a flor.


"Ai, balanços do meu galho,

"Balanços do berço meu;

"Ai, claras gotas de orvalho

"Caídas do azul do céu!...


Chorava a flor, e gemia,

Branca, branca de terror,

E a fonte, sonora e fria

Rolava levando a flor.


"Adeus, sombra das ramadas,

"Cantigas do rouxinol;

"Ai, festa das madrugadas,

"Doçuras do pôr do sol;


"Carícia das brisas leves

"Que abrem rasgões de luar...

"Fonte, fonte, não me leves,

"Não me leves para o mar!..."


As correntezas da vida

E os restos do meu amor

Resvalam numa descida

Como a da fonte e da flor...


     Que poema tão belo, tão nosso.

 

Inger Christensen

 


Se estou

sozinha na neve

é óbvio

que sou um relógio


de outro modo como poderia

a eternidade deslizar


Trad. José Alberto Oliveira


      A poetisa dinamarquesa Inger Christensen, já falecida e eternamente candidata ao Nobel, vale bem a pena ser conhecida.

Frida & Jon Lord - The Christmas Experiment

 

 

      Frida Lyngstad, sounds absolutely fantastic and Jon Lord is a keyboard master. I wish I had words to explain how incredible it is but unfortunately I am not able to. Here we have Christmas in May.


Hélio Pellegrino - Plenitude

 


A pedra, o vento, a luz alteada,

o salso mar eterno, o grito

do mergulhão, sob o infinito azul:


— Deus não me deve nada.


Hélio Ricciardi

 


Hoje senti falta das minhas fantasias.

Sentei-me na minha cadeira de balanço, como sempre, para viajar.

Ainda, da minha cadeira de balanço, sou tudo o que desejo ser:

rei, piloto de avião, marinheiro...

Ou aquele operário que volta do trabalho

e pára no portão de um casebre para receber o sorriso da sua namorada

como prémio do seu dia de árduo labor.

Hoje não estou triste. Não sou ninguém, não consigo ser nada.

Onde foram parar minhas fantasias?


Guilherme de Almeida - Romance

 



E cruzam-se as linhas

no fino tear do destino.

Tuas mãos nas minhas.


Ferreira Gullar - Aprendizado

 

O mesmo modo que te abriste à alegria

abre-te agora ao sofrimento

que é fruto dela

e seu avesso ardente.


Do mesmo modo

que da alegria foste

ao fundo

e te perdeste nela

e te achaste

nessa perda

deixa que a dor se exerça agora

sem mentiras

nem desculpas

e em tua carne vaporize

toda ilusão.


Que a vida só consome

o que a alimenta.


Alfredo Monteiro Brochado - Desvio

 

Quem teria eu sido se fosse

aquele para que nasci?

Talvez o mesmo rio de água doce,

a procurar a foz junto de ti.


Mas quem serias tu? Vagas imagens.

Impossível saber!

Pois outras deveriam ser as margens,

por onde o rio havia de correr.


Gonçalo M. Tavares - O perto, o longe

 

Não há definições minuciosas, 

quando aproximamos o olhar daquilo que conhecemos 

surge o espanto,

por vezes assustamo-nos; 

é no pormenor daquilo que é familiar que surge o perigo, 

e um certo desencanto. Por vezes é

melhor não olharmos tempo de mais 

para o que amamos, alguém disse.

Dá atenção ao inimigo para o conseguires

amar, não analises o que amas para que nenhum erro

se infiltre no encanto. Se fiz isto, se o faço?


Arquivo do blogue