Jane Asher





"I met Jane Asher when she was sent by the Radio Times to cover a concert we were in at the Royal Albert Hall - we had a photo taken with her for the magazine and we all fancied her. We'd thought she was blonde, because we had only ever seen her on black-and-white telly doing Juke Box Jury, but she turned out to be a redhead. So it was: 'Wow, you're a redhead!' I tried pulling her, succeeded, and we were boyfriend and girlfriend for quite a long time." Paul McCartney

"I haven't broken it off, but it is broken off, finished. I know it sounds corny, but we still see each other and love each other, but it hasn't worked out. Perhaps we'll be childhood sweethearts and meet again and get married when we're about 70." Jane Asher

Jorge Reis-Sá - Cemitério do Prado do Repouso

Dois candeeiros, um aparador, o saco com as coisas
mais íntimas no banco da frente. Chamam-se os homens
 
das mudanças e pede-se, clemente, que mude com os móveis
a nossa vida. Por favor, senhor Joaquim, pode-me mudar esta
tristeza que me inunda? Mas o senhor Joaquim encolhe os
 
ombros, ajusta a madeira na carrinha para que não risque
e diz, meu caro, mudar essas coisas só se for num camião
tir e nós, aqui na Joaquim Ribeiro Unipessoal, não temos disso.
 
Talvez ligar os dois candeeiros.

Ana Hatherly

Quero dizer mais
e digo: mais

Mas cada vez
digo menos
o mais que sei
e sinto.

Anna Lea Merritt


    A tela mostra-nos a árvore do bem e do mal com os frutos maduros e as primeiras flores, como se a primavera e o outono coexistissem no tempo. E, já distante da inocência primordial, conhecedora do desejo humano, Eva esconde o corpo nu. A trança toca o chão.

Ruy Belo - O valor do vento

Está hoje um dia de vento e eu gosto do vento
O vento tem entrado nos meus versos de todas as maneiras e
só entram nos meus versos as coisas de que gosto
O vento das árvores o vento dos cabelos
o vento do inverno o vento do verão
O vento é o melhor veículo que conheço
Só ele traz o perfume das flores só ele traz
a música que jaz à beira-mar em agosto
Mas só hoje soube o verdadeiro valor do vento
O vento actualmente vale oitenta escudos
Partiu-se o vidro grande da janela do meu quarto.

Eugénio de Andrade

De onde vem? De que fonte
ou boca
ou pedra aberta?
É para ti que canta
ou simplesmente
para ninguém?

Que juventude
te morde os lábios?
Que rumor de abelhas
te sobe à garganta?
Não perguntes, escuta:
é para ti que canta.


Nota: Quatro perguntas inúteis.

Kaori Muraji : Roland Dyens - Saudade nº 3



     Kaori Muraji nasceu em Tokyo, em 14 de abril de 1978. É considerada uma das melhores guitarristas clássicas do nosso tempo. Toca, de olhos fechados, com uma uma sensibilidade fina oriental. Joaquín Rodrigo pouco antes da sua morte, elegeu-a como a sua voz para o século XXI. Este tema, Saudade nº3 de Roland Dyens, que se divide em três partes: Rituel, Danse e Fete et Final é uma obra prima. Desde o primeiro arpejo com sabor flamenco - com eco para o acorde que força ao silêncio - até ao belíssimo acorde final, passa o vento dos vales, as festas da vida e o retorno.



     Kailee Bialaszewski marcou uma entrevista com o músico franco-tunisino Roland Dyens para depois de um dos seus concertos, com a finalidade de recolher a sua opinião sobre o que se designa por guitarra clássica. Dyens, que teve como mestre o espanhol Alberto Ponce, é considerado um dos melhores executantes contemporâneos e à pergunta 'Why did you start playing guitar?' Ele responde 'Because it was just an evidence. It was this or nothing.' Notável.

Rogier van der Weyden



     Deus não está no cérebro. Rogier van der Weyden, para prevenir a formação do pecado em Maria Madalena, criou a ilusão de um chapéu com camadas de proteção ao mal. Com os cabelos soltos e o contorno do peito visível, as suas faltas ainda não lhe foram perdoadas. Está para breve o encontro com Jesus.

Milan Kundera

«É melhor ficar com Tereza ou ficar sozinho?

Não há forma nenhuma de se verificar qual das decisões é melhor porque não há comparação possível. Tudo se vive imediatamente pela primeira vez sem preparação. Como se um actor entrasse em cena sem nunca ter ensaiado. Mas o que vale a vida se o primeiro ensaio da vida já é a própria vida? É o que faz com que a vida pareça sempre um esquisso. Mas nem mesmo «esquisso» é a palavra certa, porque um esquisso é sempre o esboço de alguma coisa, a preparação de um quadro, enquanto que o esquisso que a nossa vida é, não é esquisso de nada, é um esboço sem quadro.
 
Tomas repete em silêncio o provérbio alemão, einmal ist keinmal, uma vez não conta, uma vez é nunca. Não poder viver senão uma vida é pura e simplesmente como não viver.»

in, A insustentável leveza do ser

Nuno Dempster - Prevalência

Tão frágeis as papoilas,
inaudível o canto do serzino,
livres os seres
dos rios e do mar,
e as mulheres que dançam:
tudo permaneceu
depois de terem
passado os godos.

Andre Henri Dargelas


Com o título 'Out of reach', que significa 'fora do alcance', a tela ilustra a realidade dos limites logo desde a infância. O caminho de regresso da escola é um túnel sombrio, onde a sacola e o livro estão espalhados pelo chão. Resta a interajuda.

John Callcott Horsley


Outra tela muito bela. A lareira e a janela são os lugares de onde provem o fogo e a luz que permitem a serenidade necessária aquele canto da casa, onde uma mulher bela desvia o olhar do livro para o fixar em nós. Na parte superior da lareira uma vela, apagada, cria a tensão necessária ao desequilíbrio.

Sophie Anderson


O título da tela é Wait for me, Esperem por mim. A luz no rosto e o muro reforçado sugerem a interpretação.

Alejandra Pizarnik - Mendiga


E ainda me atrevo a amar a luz numa hora morta,
a cor do tempo num muro abandonado.

No meu olhar perdi tudo.
Fica tão longe pedir. Tão perto saber que não há.

Tradução: Diogo Vaz Pinto


Alejandra Pizarnik (1936-1972) nasceu em Buenos Aires.

Herbert Pixner Trio - Leckmicha Marsch


Jean-Léon Gérôme - Betsabá


     O rei David, pastor de origem e ungido do Senhor, herói judeu que matou o gigante Golias e se tornaria rei de Israel, subjugou vários povos: filisteus, moabitas, amonitas, arameus, todavia o seu coração foi subjugado por Betsabá.

     Conta-se no Antigo Testamento que o rei David, depois de tirar uma sesta, avistou do seu palácio uma mulher "muito formosa" que tomava banho. Era Betsabá. Pediu que a trouxessem ao palácio e logo a conheceu — no mais puro sentido humano. Betsabá engravidou.

     Isso não seria problema, não fosse o detalhe de Betsabá ser casada com outro homem, o pobre Urias. Entretanto Betsabá avisou a David que concebera e o rei tentou remediar a situação. Mandou chamar o seu bom amigo Urias e tentou convencê-lo a ir para casa. Lá, Betsabá levaria Urias para a cama e tudo estaria resolvido: Urias seria pretensamente o pai do filho de Betsabá.

     Só que Urias recusou-se. Não uma, mas duas vezes. Para um soldado honrado como ele, parecia indigno desfrutar os encantos sexuais de uma mulher enquanto os seus companheiros guerreavam.

     Então, David pediu a Joab, chefe do seu exército, que pusesse Urias no lugar onde a guerra contra os amonitas fosse mais violenta. Foram as seguintes as palavras de David "Coloque Urias na frente, onde o combate for mais renhido e desampare-o para que ele seja ferido e morra."

     E foi o que aconteceu. Betsabá estava livre. Passado o luto, ela tornou-se, oficialmente, mulher de David. Não a única. Homens como David podiam ter várias mulheres. Betsabá foi a oitava. Ela teve ainda outro filho com David, cujo nome foi Salomão.

Rogier Van Der Weyden - The Magdalene Reading



 
   
 
     A pintura é um dos três fragmentos sobreviventes de um grande painel de retábulo do século XV e releva-nos uma mulher de face pálida e pálpebras ovais típico dos retratos das mulheres nobres na pintura flamenga. Está identificada como Madalena no seu atributo usual - a jarra de alabastro - e está concentrada na leitura, num modelo de vida contemplativa, arrependida e absolvida de pecados passados.
..
O manuscrito - repare-se no pano branco que o protege do contacto com o mundo - "parece mais uma Bíblia do século XIII” e é "sem dúvida um texto devocional". Está sentada numa almofada vermelha e descansa as costas num aparador de madeira. A vista que se tem através da janela é um canal distante, com um arqueiro no cimo do muro do jardim, e uma figura a caminhar do outro lado da água com reflexo.

No período medieval, a pele simbolizava a sexualidade feminina e era, muitas vezes, associada a Maria Madalena. Veste uma túnica verde, que está presa debaixo do peito por uma cinta, enquanto o brocado dourado do seu saiote tem joias a decorá-lo. Repare-se no detalhe com a jarra e linha de pregos no chão de madeira no canto inferior direito do painel.
 
O passado de Madalena como ‘mulher da vida’ está representado pela felpa do forro de pele do seu vestido e pelos poucos fios de cabelo que ficaram fora do véu. "Até os seus dedos, posicionados em forma de círculo, sugerem plenitude e perfeição. Na sua combinação entre pureza e erotismo, a Madalena de Van der Weyden transmite-nos um todo completo.

Emily Dickinson

“I know nothing in the world that has as much power as a word. Sometimes I write one, and I look at it, until it begins to shine.”
 
Nota: A palavra deve ter três guardiões: ser verdadeira, ser simpática, ser necessária. E a ser, será construtora do melhor ato.

Carlos Antonio Bonell - Strawberry Fields Forever



O idioma da guitarra clássica situa-se do lado de lá de muitas outras linguagens: é introspetivo, transubstancial - trans (para além da substância) - do som. Carlos Bonell nasceu em Londres, mas é filho de pais espanhóis e tem os Beatles e Lorca no sangue.

Iosif Brodskii



E a página e o fogo, e a mó e o grão,
e o gume do machado e o cabelo cortado,
Deus tudo conservará, sobretudo as palavras
de perdão e de amor que são o âmago da sua voz.

Nelas o pulso forçado luta, nelas o osso range,
nelas a pá rasga a terra. Monocórdicas e surdas,
porque a vida é una, ressoam mais claras na boca
dos mortais do que no algodão em rama do céu.

Do outro lado dos mares saúdo a grande alma
que as encontrou e a sua parte mortal que agora
dorme na terra natal a que tu deste
o dom da palavra neste mundo surdo-mudo.


Tradução de Carlos Leite

Nota: Poema para uma das maiores poetisas russas, Anna Akhmatova. A sua obra compõem-se tanto de pequenos poemas líricos como de grandes poemas, como o Requiem, acerca do terror estalinista. Os 2 homens da sua vida, que também eram poetas, foram executado pelo regime. Aqui deixo dois exemplos da sua poesia:
 
Não, não foi sob um céu estrangeiro,
nem ao abrigo de asas estrangeiras –
eu estava bem no meio do meu povo,
lá onde o meu povo infelizmente estava.
 
(1961)
 
Nos anos terríveis da Iéjovshtchina, passei dezassete meses a fazer fila diante das prisões de Leningrado. Um dia, alguém me ‘reconheceu’. Aí, uma mulher de lábios lívidos que, naturalmente, jamais ouvira falar o meu nome, saiu daquele torpor em que sempre ficávamos e, falando pertinho do meu ouvido (ali todas nós só falávamos sussurrando), me perguntou:
 
– E isto, a senhora pode descrever?
 
E eu respondi:
 
– Posso.
 
Aí, uma coisa parecida com um sorriso surgiu naquilo que, um dia, tinha sido o seu rosto.
 
(Leningrado, 1º de abril de 1957)

Anne Queffélec


 
O alimento para a alma. Como escreveu Proust em À Procura do Tempo Perdido "A música pode ser o exemplo único do que poderia ter sido - se não tivesse havido a invenção da linguagem, a formação das palavras, a análise das ideias - a comunicação das almas."

José Tolentino Mendonça - A paciência

Para ser sincero, há momentos em que a minha admiração converge toda para a impaciência. Por alguma razão, a mim misteriosa, nunca me pareceu um peso lidar com os impacientes (fossem os outros ou eu próprio). Facilmente se ativa o meu humor perante alguém que ferve em menos água do que aquela que tem um oceano.
 
E, da mesma maneira que me comove a reverência verdadeira, admiro os irreverentes, aprendo com os que se empenham em contrariar indefinidas esperas, agradeço aos que sacodem a estabilidade preguiçosa dos nossos tiques, procuro balançar os motivos dos que dizem “não estou para isso”.
 
Contudo, acho que descubro sempre mais que a paciência é uma preciosa estação interior na qual todos precisamos maturar. Quando penso na paciência, ancoro muitas vezes na imagem da semente, no desprendimento e na lentidão da semente que aceita a escuridão da terra como condição para florescer.
 
Tanto os que semeiam os campos, como os que depositam sementes nos corações, deveriam primeiro ter formado a alma na paciência. Pois a paciência, ao revelar o escondido processo de germinação da vida, também torna claro que é essa a única forma de cuidar bem dela, de a entender até ao fim, de acompanhá-la, passo a passo, com esperança.
 
É curiosa a etimologia da nossa palavra “paciência”. Deriva de “passio”, isto é, paixão, no sentido de coisa a suportar, a padecer ou no sentido de resistir. A paciência faz-nos mergulhar, como se vê, no âmago da vida. Deve, é claro, ser ensinada às crianças, mas é uma tarefa para ser levada a cabo por um coração adulto.
 
A paciência pede que apreendamos a complexidade de que somos tecidos, que nos debrucemos sobre esta íntima narrativa tecida de esforço e de graça, de sede e de água, de noite e de riso. Não nos deixa esbracejar à tona do tempo, num simplismo atropelado e ofegante. A paciência pede e dá-nos tempo, dilatando as provisórias metas e juízos que equivocadamente erigimos em absolutos.
 
Há uma harmonia secreta, há um suculento sabor que só colhe da vida aquele que abraça com confiança a demora, a lentidão e a espera. São estas frequentemente as ferramentas da paciência, os instrumentos com que ela transforma a nossa agitação epidérmica em expectação serena e criativa. No fundo, a paciência prova-nos como se provam os metais de valor, averiguando o seu (o nosso) grau de autenticidade. 
 
Santa Teresa de Ávila, segundo o que ela conta de si mesma e no acordo dos seus biógrafos, não possuía um temperamento propriamente paciente. Era abrupta na ação, emotiva nos dilemas e combates, inconsolável no desejo de Deus. A paciência raramente é uma virtude natural. A maior parte das vezes faz-se de decisão e caminho. E por isso a impaciente Teresa escreveu um dos mais belos elogios da paciência:
 
«Nada te turbe/nada te espante/quem a Deus tem nada lhe falta.//A paciência tudo alcança/só Deus basta».
 
Há também um título de um opúsculo de Kierkegaard que podia-nos acompanhar estrada fora: «Adquirir a sua alma pela paciência». O filósofo dinamarquês recorda-nos a verdade essencial: estamos tanto mais em nós mesmos quanto mais aceitamos o desafio da maturação paciente da existência.
 
José Tolentino Mendonça
In Diário de Notícias - Madeira
15.02.11

João Almeida - As condições locais

Despede-se o amigo junto à porta do elevador
- Quando nos voltaremos a encontrar.

Vai à procura de sustento
Seguindo o ciclo dos nómadas assalariados
Ao dia
Por essas terras com dono
Noite e dia

A guerra foi declarada
Campos de trigo em absoluto silêncio.

in, Telhados de Vidro

Violeta Bubelytė

 

    Violeta Bubelyté nasceu na Lituânia em 1956. Despiu-se e começou a fotografar-se a si própria na procura de respostas à pergunta "De que é feita a natureza humana?". Encontrou luz no corpo.

Martin Niemoller

Primeiro levaram os judeus,
Mas não falei, por não ser judeu.
Depois, perseguiram os comunistas,
Nada disse então, por não ser comunista,
Em seguida, castigaram os sindicalistas
Decidi não falar, porque não sou sindicalista.
Mais tarde, foi a vez dos católicos,
Também me calei, por ser protestante.
Então, um dia, vieram buscar-me.
Mas, por essa altura, já não restava nenhuma voz,
Que, em meu nome, se fizesse ouvir.

Eileen Soper 1905-1990

Image
 
    Sem as ilustrações de Eileen Soper os livros dos Cinco de Enid Blyton não são os mesmos. Nunca se casou nem teve filhos, mas a marca que nos deixou na infância e na adolescência vai acompanhar-nos para sempre. Morreu numa 'nursing home'.
 


Roland Barthes - O Mito, hoje

"O mito não nega as coisas, a sua função é, pelo contrário, falar delas; simplesmente, ele purifica-as, torna-as inocentes, funda-as enquanto natureza e eternidade, dá-lhes uma clareza que não é a da explicação, mas a da constatação: se eu constatar a imperialidade francesa sem a explicar, pouco basta para que eu a ache natural, óbvia; eis-me tranquilizado. Passando da história à natureza, o mito faz uma economia: provoca a abolição da complexidade dos atos humanos, dá-lhes a simplicidade das essências, suprime toda a dialética, toda a elevação para além do imediatamente visível, organiza um mundo sem contradições porque sem profundidade, um mundo exibido na sua evidência, funda uma claridade feliz: as coisas têm a aparência de significar por si sós."
 
Tradução de José Augusto Seabra
- Trinta e sete, trinta e oito, trinta e nove.
(O Avô contou as ovelhas uma a uma).
Depois contou mais seis.
- Avô, não me disseste que cada ser é mais que um?
Dias antes, o Avô dissera-me que cada ser é sempre mais que um, é múltiplo.
A seguir fechou o redil em silêncio.
Fomos até junto da figueira maior. O Avô colheu um figo escuro, ofereceu-mo; colheu outro para ele. Retirei um bocado da pele, retirei outro, retirei ainda outro. Meti uma porção do fruto na boca.
- Avô, o figo que me deste são dois?
O Avô levantou-se, apoiou o seu lado esquerdo sobre o cajado, levantou o outro braço para a figueira. Depois colocou na minha mão dois figos unidos pelo mesmo raminho.


in, cartas do meu moinho

Amour

 
Onde reside a morte não há espaço para a esperança.

Herberto Helder

Havia um homem que corria pelo orvalho dentro.
O orvalho da muita manhã.
Corria de noite, como no meio da alegria,
pelo orvalho parado da noite.
Luzia no orvalho. Levava uma flecha
pelo orvalho dentro, como se estivesse a ser caçado
loucamente
por um caçador de que nada se sabia.
E era pelo orvalho dentro.
Brilhava.

Não havia animal que no seu pêlo brilhasse
assim na morte,
batendo nas ervas extasiadas por uma morte
tão bela.
Porque as ervas têm pálpebras abertas
sobre estas imagens tremendamente puras.

Pelo orvalho dentro.
De dia. De noite.
A sua cara batia nas candeias.
Batia nas coisas gerais da manhã.
Havia um homem que ia admiravelmente perseguido.
Tomava alegria no pensamento
do orvalho. Corria.

Ouvi dizer que os mortos respiram com luzes transformadas.
Que têm os olhos cegos como sangue.
Este corria, assombrado.
Os mortos devem ser puros.
Ouvi dizer que respiram.
Correm pelo orvalho dentro, e depois
estendem-se. Ajudam os vivos.
São doces equivalências, luzes, ideias puras.
Vejo que a morte é como romper uma palavra e passar

— a morte é passar, como rompendo uma palavra,
através da porta,
para uma nova palavra. E vejo
o mesmo ritmo geral. Como morte e ressurreição
através das portas de outros corpos.
Como uma qualidade ardente de uma coisa para
outra coisa, como os dedos passam fogo
à criação inteira, e o pensamento
pára e escurece

— como no meio do orvalho o amor é total.
Havia um homem que ficou deitado
com uma flecha na fantasia.
A sua água era antiga. Estava
tão morto que vivia unicamente.
Dentro dele batiam as portas, e ele corria
pelas portas dentro, de dia, de noite.
Passava para todos os corpos.
Como em alegria, batia nos olhos das ervas
que fixam estas coisas puras.
Renascia.

Herberto Hélder in, A faca não corta o fogo


Não interessa falar, mas iluminar com as palavras. Foi isso que fez o velho poeta nestes versos ao ilustrar o ser humano no seu rumo de morte e no seu rumo de vida.

Moddi - House by the Sea



Pål Moddi Knutsen é um cantor da nova geração norueguesa de songwriters. Em Janeiro de 2010, Moddi recusou aceitar o prémio de 800 mil coroas norueguesas doado pela empresa Statoil, uma das maiores companhias de petróleo e gás do mundo. O motivo revelado pelo músico foi o de que a Statoil não estava a cumprir as metas estabelecidas para o combate às mudanças climáticas. Moddi é disléxico e aprendeu a tocar acordeão aos 9 anos de idade.

Victor Oliveira Mateus

O que dói não são as roturas, o afastamento,
a incapacidade a minar como um cancro
oculto e certeiro. O que dói não é
a pouca solidez com que se disse
esta ou aquela palavra, esta ou aquela frase;
com que se insistiu, apesar de receios vários,
na grotesca encenação do que se previa
muito aquém de qualquer futuro. O que dói
não é a viscosidade das emoções a grafar-se
em algum mapa antecipadamente condenado,
nem tão-pouco a insistência de uma insolúvel
lembrança a fugir. O que dói verdadeiramente
é acordarmos um dia e descobrirmos
que nada disso teve importância alguma.
 
in, Gente Dois Reinos
 
Se 'nada disso teve importância alguma' e dói, é porque teve e tem ainda importância maior. Mas a terra cura tudo.

Paul Corfield

   
   Paul Corfield nasceu em Bournemouth, Reino Unido, em 1970 . As suas telas lembram balões de ar aquecido onde cada lugar está suspenso em jogos cromáticos de luz. Um manifesto anti-linha reta.

Fernando Pessoa

Se estou só, quero não estar,
Se não estou, quero estar só,
Enfim, quero sempre estar
Da maneira que não estou.


Ser feliz é ser aquele.
E aquele não é feliz,
Porque pensa dentro dele
E não dentro do que eu quis.


A gente faz o que quer
Daquilo que não é nada,
Mas falha se o não fizer,
Fica perdido na estrada.


As ambivalências.

Guimarães Rosa

O rio nasce
toda a vida.
Dá-se
ao mar a alma vivida.
A água amadurecida,
a face
ida.
O rio sempre renasce
A morte é vida.


A leitura humana.

Lara Fernandes

Foto: Último Recital no Conservatório :')
Quinta-feira às 21:30H. Apareçam !
   
    Guardei o silêncio do vento da rua e do puxador da porta, das escadas escuras a descer para o auditório e dos meus passos sós no corredor, do 'Boa noite' cortês aos amigos e à mãe da Lara, da solidão da cadeira entre os vasos e do 'Obrigado' ao professor Hugo e de todas as palmas, dentro de mim, como um anjo velho.
   Guardei as Variações de Fernando Sor, a pensar no que tinha lido de Brian Jeffrey sobre elas 'no space is wasted and the music devotes itself not to 'guitaristic' effects but only to itself'; a canção de embalar afro-cubana 'Cáncion de cuna' de Leo Brouwer provavelmente inspirada no poema de Federico Garcia Lorca com o mesmo nome e o Estudo nº 4 de H. Villa-Lobos.
   Guardei o momento que mais aguardava, Elegie, do compositor húngaro Kaspar Mertz de um lirismo quase total. Mesmo a soar nos dedos ao piano de Chopin ou Schumann era para mim o tema mais belo de todo o reportório.

Konstantinos Kaváfis - À espera dos bárbaros

O que esperamos na ágora reunidos?
.
É que os bárbaros chegam hoje.
.
Por que tanta apatia no senado?
Os senadores não legislam mais?
.
É que os bárbaros chegam hoje
Que leis hão de fazer os senadores?
Os bárbaros que chegam as farão.
.
Por que o imperador se ergueu tão cedo
e de coroa solene se assentou
em seu trono, à porta magna da cidade?
.
É que os bárbaros chegam hoje.
O nosso imperador conta saudar
o chefe deles. Tem pronto para dar-lhe
um pergaminho no qual estão escritos
muitos nomes e títulos.
.
Por que hoje os dois cônsules e os pretores
usam togas de púrpura, bordadas,
e pulseiras com grandes ametistas
e anéis com tais brilhantes e esmeraldas?
Por que hoje empunham bastões tão preciosos,
de ouro e prata finamente cravejados?
.
É que os bárbaros chegam hoje,
tais coisas os deslumbram.
.
Por que não vêm os dignos oradores
derramar o seu verbo como sempre?
.
É que os bárbaros chegam hoje
e aborrecem-se com arengas, eloquências.
.
Por que subitamente esta inquietude?
(Que seriedade nas fisionomias!)
Por que tão rápido as ruas se esvaziam
e todos voltam para casa preocupados?
.
Porque é já noite, os bárbaros não vêm
e a gente recém-chegada das fronteiras
diz que não há mais bárbaros.
.
Sem bárbaros o que será de nós?
Ah! eles eram uma solução.
 .
Konstantinos Kaváfis (Alexandria, 1863-Alexandria, 1933). Considerado um dos maiores poetas gregos modernos. Não chegou a publicar nenhum livro, apenas poemas em folhetins e jornais.

O Labirinto

    Ouvi Borges dizer que se recordava que uma tarde o pai lhe tinha dito algo muito triste sobre a memória, tinha-lhe dito: «Pensei que conseguiria recordar a minha infância quando cheguei a primeira vez a Buenos Aires, mas agora sei que não consigo, porque creio que se recordo algo, por exemplo, se hoje recordo algo desta manhã, obtenho uma imagem do que vi esta manhã. Mas se esta noite recordo algo desta manhã, o que então recordo não é primeira imagem, mas sim a primeira imagem da memória. Assim, cada vez que recordo algo, não o estou a recordar realmente, mas estou sim a recordar a última vez que o recordei, estou a recordar uma última recordação. Por isso, na realidade não tenho em absoluto recordações nem imagens sobre a minha infância, sobre a minha juventude.»
    Depois de evocar estas palavras do pai, Borges calou-se durante uns segundos que me pareceram eternos, e logo a seguir acrescentou: «Tento não pensar em coisas passadas porque, se o faço, sei que o estou a fazer sobre recordações, não sobre as primeiras imagens. E isso põe-me triste. Entristece-me pensar que talvez não tenhamos verdadeiras recordações da nossa juventude.»
 
Vila-Matas, in Paris nunca se acaba

As imagens da memória não morrem e por vezes regressam aos campos de morangos silvestres onde, como no velho de Bergman, nos reconciliam ou nos amarguram com o passado. Ali, entre o orgulho e o remorso.

Os Contos de Cantuária


 
    The Canterbury Tales é uma coleção de histórias escritas a partir de 1387 por Geoffrey Chaucer, considerado um dos consolidadores da língua inglesa. Nesta obra, cada conto é narrado por um peregrino de um grupo que realiza uma viagem desde Southwark em Londres até à Catedral de Cantuária para visitar o túmulo de São Tomás Becket.
    A obra centra-se num grupo viajantes que, representando as classes sociais e ofícios da época saem da pousada Tabard em Southwark, dirigem-se a Cantuária com o objetivo de prestar homenagem a São Thomas Becket, um bispo católico assassinado, em 1170, por partidários do rei Henrique II de Inglaterra. Entre os viajantes está o próprio Chaucer.
    Os personagens incluem um cavaleiro e o seu escudeiro, um mercador, monges, um frade mendicante, uma prioresa, um pároco, um vendedor de indulgências, um estudante, alguns profissionais liberais (um médico, um advogado, um jurista), um moleiro, um feitor, um cozinheiro, um marinheiro, um carpinteiro, um tintureiro, um tapeceiro, um marujo, um lavrador e uma viúva de cinco maridos. Assim, quase toda a sociedade medieval está retratada entre os peregrinos.
    Ainda na pousada, por sugestão do hoteleiro, os personagens decidem passar o tempo durante a viagem contando histórias. Aquele que contar o melhor conto, na opinião da maioria, ganhará um jantar sem pagar. A partir desse ponto cada personagem conta um conto, de acordo com a posição social de cada um. Muitos dos relatos são precedidos por um pequeno prólogo, e muitos são comentados entre os personagens depois de serem contados.
    No final da obra Chaucer incluiu uma retratação, em que desculpa-se a Deus e aos leitores pelo baixo nível moral de alguns contos.

Vater und Sohn



.....A simplicidade é a marca do cartunista alemão Erich Ohser.
 
Com um lirismo que atravessa qualquer barreira de idioma, ele é capaz de emocionar o leitor em apenas alguns quadrinhos. O tema central do seu trabalho é a relação entre um pai e um filho. São personagens que não precisam de nome. Só gestos, choros e sorrisos. O que ele deixou no papel é poesia. Em 5 de abril 1944, torturado pela Gestapo, a polícia secreta de Hitler, decidiu tirar a própria vida.

Antoine Roegiers - The Seven Deadly Sins


Trailer do filme baseado  em « The Seven Deadly Sins » de Pieter Brueghel, 1559. A música é de Antoine Marroncles.

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