Olhar
o rio feito de tempo e água
e
lembrar que o tempo é outro rio,
saber
que nos perdemos como o rio
e
que também os rostos passam como a água.
Sentir
que a vigília é outro sonho
que
sonha não sonhar e que a morte
que
a nossa carne teme é essa morte
de
cada noite, chamada sonho.
Ver
no dia ou ano um símbolo
dos
dias do homem e de seus anos,
fazer
do ultraje dos anos
uma
música, um símbolo, um rumor,
Ver
na morte o sonho, no ocaso
um
ouro triste, tal a poesia
que
é imortal e pobre. A poesia,
que
volta como o ocaso e a aurora.
Às
vezes de tarde uma cara
olha
para nós do vidro de um espelho;
a
arte deve ser como esse espelho
que
nos revela a nossa própria cara.
Dizem
que Ulisses, farto de prodígios,
chorou
de amor ao avistar sua Ítaca
humilde
e verde. A arte é essa Ítaca
de
verde eternidade, não de prodígios.
E é
também como o rio interminável
que
passa e fica e é espelho de um mesmo
Heráclito
inconstante, que é o mesmo
e
outro, como o rio interminável.
Borges descreveu a sua experiência de escutar, quando
criança, um poema de Keats, lido em voz alta pelo pai. O que Borges retira
dessa recordação, apesar de não ter compreendido as palavras na altura, é o
facto de ter sentido que qualquer coisa lhe acontecia: «Acontecia não apenas à
minha inteligência, mas a todo o meu ser, à minha carne e ao meu sangue.» Mas
há mais duas coisas que nós, enquanto leitores, podemos retirar desta memória:
que, para Borges, saber o que significa tal poema não é condição necessária
para se sentir e experienciar esse ou qualquer outro poema; e que o propósito
de um poema, tendo em conta o ponto anterior, não é apenas o de significar seja
o que for, mas o de causar algo no leitor que, ironicamente, ele não consiga
colocar muito bem em palavras, por melhor argumentação que use. Para Borges,
ler poesia não é só sobre comunicação, tal como não é só sobre saber o que o
poema possa querer dizer; é sobre senti-lo.
Lauro Reis
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