O
IDIOTA é geralmente competente, moralmente irrepreensível e socialmente
necessário. Faz o que tem a fazer sem dúvidas ou hesitações, respeita as
hierarquias, toma sempre o partido do bem e acredita religiosamente nas grandes
ficções sociais.
A
incapacidade de relacionar as coisas, as ideias e as sensações transforma-a ele
em força, e como lhe escapam as causas e os fins do que lhe mandaram fazer,
fá-lo com prontidão e limpeza, sem introspecções inúteis. Do mesmo modo, como
vê no destino o único regulador da vida, acha que se uns dão ordens e outros
obedecem é porque todos cumprem misteriosas injunções da providência, as quais
é não só inútil, mas criminoso sondar.
O
idiota só pode ser bom. Para o mal, precisa-se de imaginação, inteligência
discriminativa, espírito científico. Como também não dispõe de virtualidades
poéticas e é, portanto, incapaz de se criar a si próprio, idolatra quem o
criou: Deus em primeiro de tudo, e depois os pais.
O
idiota é um bom cidadão. Sem ele, a sociedade entraria em curto-circuito,
incendiada entre os polos do dever heróico e da desobediência revolucionária.
Dado ser-lhe vedado apreender o nexo que liga a evolução dos meios de produção
à transformação das relações de propriedade acredita de facto que o corolário
das novas tecnologias é o reforço da iniciativa privada, da livre empresa e do
livre mercado. É o único que acredita nisso e ainda bem. Se ninguém
acreditasse, esta sociedade parava. O idiota é todo liberdades.
A
idiotia também faz bem às artes, principalmente às audiovisuais. A concentração
do idiota numa ideia fixa, torna--o especialmente receptivo às músicas de ritmo
simples e batida forte, o que facilita extraordinariamente o comércio
discográfico, com todas as vantagens que daí advêm para producers e performers,
enfim, para o tecido social. No que diz respeito às artes plásticas, tudo é
mais fecundo se não houver interferências entre os olhos e as mãos. As ideias
perturbam, turvam o olhar, atrapalham o gesto e, nos casos de ideologite aguda,
daltonizam as cores. Sem imagens, uma cabeça vazia endoidece.
Embora
para um idiota seja uma desvantagem não saber que o é, normalmente ninguém lho
diz: segundo Brecht, «tornar-se-ia vingativo como todos os idiotas». Aliás, o
mesmo Brecht diz que ser idiota não é grave: «É assim que você poderá chegar
aos 80 anos. Em matéria de negócios é mesmo uma vantagem. E então na política!»
O
idiota puro é o idiota jovem. Com o tempo, torna-se cínico, adquire hábitos
esquisitos, sempre à procura do que lhe serve ou lhe rende, em busca de
técnicas para obter sucesso e se sentir bem, sereno, de boa saúde e belo
aspecto: cristianismo, ioga, dieta macrobiótica, drogas, parapsicologia,
psicanálise, etc.
Para o
idiota, os sentimento e as emoções são «uma boa», constituindo dados
manipuláveis. Em si mesmos, não lhes acha qualquer sentido ou valor, mas de
qualquer modo são coisas que lhe podem trazer vantagens ou desvantagens: é
preciso, portanto, avaliar-lhes as implicações e consequências. Ao lidar com
sentimentos e emoções, os próprios e os alheios, o problema, para o idiota,
consiste em controlá-los, guiá-los, desfrutá-los, e isso implica trabalho,
cálculos complicados e a aprendizagem de técnicas nem sempre fáceis.
Impossível,
realmente, para o idiota, é a espontaneidade criativa. É algo que lhe surge
como uma perspectiva insegura e assustadora. À criação, prefere os sucedâneos
que se aprendem nos «workshops» e nas escolas. É uma vida dura, a do idiota: de
curso em curso, de colóquio em colóquio, de ciclo em ciclo. Se tem dinheiro, o
idiota não se priva de ir ao sexologista e ao psicanalista aprender a libertar
os apetites e fantasias sexuais e sentimentais. Com o tempo, tudo se torna para
ele aprendizagem e contabilidade: do prazer, da espontaneidade, da
criatividade. Cautelosa, como a contabilidade do dinheiro. Ao idiota, repugnam
os ímpetos passionais, poéticos e místicos: procura prazeres seguros,
previsíveis, e afasta tudo o que possa perturbá-lo.
No
plano do consumo e na vida social, o idiota português aprecia as coisas
cómodas, os pequenos e grandes privilégios, planeando com minúcia o modo de
obtê-los. Sejam quais forem as suas petições de princípio políticas, no fundo é
um céptico, despreza o «povinho», vive fechado para os outros. Aos generosos e
altruístas, considera-os parvos ou hipócritas. O idiota circula à volta do
sucesso como a borboleta em redor da chama, agarrando-se como lapa ou mexilhão
a quem o alcança. Espertalhão, agrada-lhe receber, mas dá o menos possível, e
arranja sempre qualquer explicação ética para justificar este comportamento. Na
realidade, a sua lógica, elementar como as suas poucas ideias e imagens,
consiste apenas em receber sempre mais do que dá.
Na
actividade económica, não existe em Portugal correspondência entre o surto
idiotista e o crescimento empresarial. Em muitos cavaleiros da phinança
idiotófila prevalece ainda um conceito patrimonial da riqueza. Uma bela casa no
campo é ainda o sinal mais espaventoso de bem-estar e opulência.
Entre
os idiotas, também começa a manifestar-se, se bem que de modo caricatural, algo
que recorda o hedonismo e o utilitarismo da aristocracia de outrora: o gosto de
ser servido, de se distinguir do «vulgar». Como única crítica a filmes,
espectáculos, livros, etc., é frequente ouvi-los dizer: «Mas que mau gosto!»
Os
idiotas andam sempre juntos: consomem os mesmos produtos, frequentam os mesmos
locais, lêem os mesmos livros e jornais, e têm uma habilidade notável para
descobrir e evitar quem não é idiota. Graças a Deus! A política, porém, unifica
o conjunto da sociedade sob o signo da idiotia: pessoas estimáveis, notáveis
até nos diversos domínios do saber e da cultura, quando chegam à política
tornam-se idiotas. Triunfam, quer-se dizer. Tornam-se, enfim, públicas.
[Publicado no Diário de
Lisboa, de 12/6/87.]
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