Maria do Rosário Pedreira - Nada me pertenceu

 


Nada me pertenceu - nem o vestido indecente

que pedi emprestado para te oferecer os seios, nem

os seios, que eram já teus muito antes do vestido.


O sorriso que devassou brevemente o meu rosto não

me pertenceu; porque ninguém o viu antes de ti,

nem o espelho se convenceu a devolver-mo.


Todas as coisas que a casa guardou quando partiste não

me pertenceram; porque, ao tocar-lhe nos dias mais

cinzentos, sinto que é pelo calor dos teus dedos que ainda

gritam; e mesmo a cama onde só o teu corpo era bem-vindo

nunca chegou a ser inteiramente minha, pois, de contrário,

encontraria nela o meu lugar, e não o teu vazio.


Tu não me pertenceste - e, se uma vez acreditei que

acontecias dentro do meu corpo, das outras vi-te abraçar a

solidão com tanto ardor que concluí ser a memória quem

te mantinha vivo. O meu coração, contudo, sempre


te pertenceu - e a mão desesperada que o procura não

sente bater longe do teu peito. E mesmo os poemas todos

que escrevi não me pertenceram, porque essa vida

que pulsava no papel levaste-a tu contigo na hora

em que te foste - e a que tenho agora é mais

branca e vazia do que a morte, não é vida nem nada


que eu queira alguma vez que me pertença.


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