Piedad Bonnett - Biografia de um homem com medo

 


O meu pai cedo teve medo de ter nascido.

Mas cedo também

lhe recordaram os deveres de um homem

e lhe ensinaram

a rezar, a poupar e a trabalhar.

E daí, cedo, o meu pai se fez um homem bom.

('Um homem de verdade', diria o meu avô).

Contudo

- como cachorro a gemer, açaimado

e amarrado ao seu poste - o medo persistia

no mais fundo do meu pai.

Do meu pai,

que tinha em pequeno uns olhos tristes e de velho

mãos tão limpas e graves

como o silêncio das madrugadas.

E sempre, ainda e sempre, um ar de solitário.

De tal modo que quando eu nasci o meu pai deu-me

tudo o que sabia dar

o seu coração desorientado. Onde se incluía

a oferta do seu medo.

Como um homem de bem, o meu pai trabalhou

cada manhã, contornou cada noite

e logo que pôde comprou a prestações

a pequena morte que sempre almejou.

Foi-a pagando pontualmente,

sem sobressaltos, ano após ano,

como um homem de bem, o bom do meu pai.


Sem comentários:

Arquivo do blogue