Margaret Atwood


Histórias Verdadeiras

Não me peças a história verdadeira,
para que precisas tu dela?
Não é com isso que me levanto
nem o que transporto.
Aquilo com que vou navegando,
uma faca, fogo azulado,
sorte, algumas palavras boas
que ainda funcionam, e o instante.

A história verdadeira perdeu-se
durante o caminho para a praia, é alguma coisa
que nunca tive, esse negro emaranhado
de ramos numa luz evanescente,
as minhas pegadas esbatidas
cobrem-se com sal
água, esta mão cheia
de pequenos ossos, a matança daquela coruja;
uma lua, papéis amarrotados, uma moeda,
o resplendor de um antigo piquenique,
as covas feitas na areia
por amantes cem
anos antes: nenhuma pista.

A história verdadeira existe
no meio das outras histórias,
uma confusão de cores, como roupa despida
amontoada ou atirada fora,
como corações em mármore, como sílabas, como
os desperdícios do talho.
A história verdadeira é viciosa
e múltipla e falsa
afinal de contas. Para que precisas
tu dela? Não me peças nunca
a história verdadeira.

Nota: Os versos da poetisa canadiana Margaret Atwood descrevem a 'grande fuga' que existe em cada ser humano. Tudo nos serve menos a verdade: as máscaras de Veneza, as putas de Berlim, os filmes da Shirley Temple, os ribeiros da Babilónia, a sabedoria de Próspero, os trabalhos de Hefesto para inconscencializar as horas. Enfim, marramos torto nos mistérios.

Sem comentários:

Arquivo do blogue