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Henry Holiday - Dante e Beatriz
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Dante afirmava ter visto Beatriz pela primeira vez aos nove anos e nunca mais se ter esquecido dessa imagem. Deve ser a isto que se chama uma imagem pregnante. Prenhe antes do tempo da floração biológica da prenhez. A imagem pregnante é uma relação de ajuste, de reconhecimento, em que se vive suspenso numa espécie de espera. Dante esperou, não nove meses, mas nove anos para rever Beatriz. O número nove e seus múltiplos impregnam a Vita Nuova, povoando-a de segredos. O amor por Beatriz estava repassado de memória, morte e segredo.
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A representação de Henry Holliday mistura um possível segundo encontro aos dezoito anos com o impacto da epifania que se teria dado miticamente aos nove, sobrepondo os dois momentos. Beatriz, de vestes claras, passa, olhando em frente, compenetrada em não saudar Dante que, desacordado pela aparição, tenta esconder o seu amor, cortejando falsamente a rapariga de vestes fulvas e formas bem menos angelicais do que as de Beatriz.
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Dante leva a mão ao peito, sublinhando o embate da revelação. Esboça o gesto do animal ferido, mas a picada da dor é bem mais profunda do que o rasgão físico da lança. Num lance, deixa de ser homem e passa a oráculo de si mesmo. E vê, fora de si, o ideal do eu. Pensará talvez: eu sou mais um, eu também estou ali, noutro, não estou mais contido em mim, prolongo-me para um outro em que me reconheço, mas que não domino.
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Dante morreu com 56 anos e Beatriz com 24. Há quem diga que apenas se encontraram aos nove anos e que Dante nunca teria chegado a falar com ela. Como é amar sem conhecer a voz? Sem acesso ao ruído do outro? A ter acontecido assim, o poeta teria vivido durante 47 anos fixado numa imagem fugidia que por ele passara no final da infância. Vivia do oxigénio desaparecido há muito. Vivia da ideia de oxigénio.
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Há quem sustente que Beatriz nunca existiu. Mas também é possível que Dante a tenha conhecido fugazmente aos 18 anos. Seria Beatrice Portinari, filha do banqueiro Folco Portinari, mais tarde prosaicamente casada com outro banqueiro, esta amada ideal que atravessa o Arno pela ponte Santa Trinità, entrando muda e saindo calada de cena, aparentemente sem outro rumor do corpo que não seja o do esvoaçar do vestido florentino.
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Rosa Oliveira in, Um blog chamado blog
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