Vasco Graça Moura - A Sombria beleza do tema

 


«a sombria beleza do tema

da estação e da morte» diz o Kundera algures.

nesta imagem desenha-se um olival perdido

de surdas tonalidades, atrás do cais de onde


se despenhou alguém, alguma forma

aflita e trágica, vinda do fundo súbito de uma

paisagem tão modesta, sob as vozes

de quem chega a quem parte, ou simplesmente foi ali para olhar

outros seres de passagem, outros rasos destinos sem anjo para o

     remorso.

há flores, dirás, algumas flores diurnas, confiantes,

que outras mãos hão-de dispor na jarra, relembrada

junto à parede branca, mas essas são um ténue


sopro de acaso, ou um fulgor antecipando outra nudez.

quando a luz já se tornou mais húmida e quase musical,

e através da folhagem a harpa do desgaste estremeceu,

e passaram as horas e passaram


pesadas, contadas, divididas, já não dói

a beleza de alguém que vai partir, a sombria beleza

da sua ocultação intransmissível, uma brisa leve misturar-se-á

ao cheiro de óleo, aos acenos afectuosos, aos


ruídos do tema da estação. é tudo. à noite o olival

será uma massa negra de clareiras adiadas,

atrás do cais sem ninguém e sem tempo, como sempre acontece

nas pequenas estações de uma província da alma.


in, Rosa do Mundo


      O poema reflete sobre a atração paradoxal pelo trágico e pela memória que fere. A linguagem depurada evidencia como a beleza pode nascer da dor, explorando tensões entre luz e sombra, presença e perda. O sujeito poético contempla o passado como algo inevitável, que retorna e molda a identidade. A musicalidade e o rigor formal reforçam a serenidade melancólica com que o poeta transforma a experiência dolorosa em arte. A gravura é de  Albrecht Dürer, Melancolia.


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