Júlio Pomar - TRATAdoDITOeFEITO

 


Não acredito que haja quem não tenha avistado uma vez que

                                                   fosse o avesso

do mundo.

Mas com receio

de se enganar ou de vir a ser

perseguido, quem aí esteve não sabe como

dizê-lo ou o que contar sem perigo.

E se acaso algo viram, atentaram depois

no que lhes foi possível discernir

do avesso do mundo?


Nas escolas são as crianças proibidas de

falar nisso umas às outras

e as professoras explicam-lhes que é para bem delas, para lhes

guardar a candura, é falso, é para

não se meterem em trabalhos e não correrem o risco

de pôr lado a lado afirmações opostas

tão verdadeiras umas como outras

porque ajustá-las entre si nunca deu resultado nem trouxe a paz

às famílias. Como explicar isto a quem vive na crença de que é preciso

escolher, trinchar, riscar do quadro o que está mesmo a ver que não é

preto nem branco, cru ou cozido, duro ou mole?

Assim as constituições regem os países, se escrevem as leis e

regulamentam os jogos,

se anunciam os modelos de vida, os exemplos

morais os feitos

heroicos os bravos

suicidas.

 

      O poema explora a tensão entre linguagem, poder e consequência. O título condensado e fragmentado sugere simultaneamente "tratado", "dito" e "efeito", indicando que toda afirmação produz impacto político e simbólico. A escrita joga com a materialidade da palavra, aproximando poesia e gesto visual, característica do autor-pintor. Há ironia e crítica à retórica institucional: o discurso não é neutro, organiza realidades e legitima ações. O poema desmonta certezas, expondo como o sentido nasce do conflito entre o que se diz e o que acontece. Assim, a linguagem surge como campo de luta, não como mero instrumento comunicativo.


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