José Jorge Letria - Ode aos Natais Esquecidos

 



Eu vinha, pé ante pé, em busca da pequena porta

que dava acesso aos mistérios da noite,

daquela noite em particular, por ser a mais terna

de todas as noites que a minha memória

era capaz de guardar, com letras e sons,

no seu bojo de coisas imateriais e imperecíveis.

Tinha comigo os cães e os retratos dos mortos,

a lembrança de outras noites e de outros dias,

os brinquedos cansados da solidão dos quartos,

os cadernos invadidos pelos saberes inúteis.

E todos me diziam que era ainda muito cedo,

porque a meia-noite morava já dentro do sono,

no território dos anjos e dos outros seres alados,

hora inatingível a clamar pela nossa paciência,

meninos hirtos de olhos fixos na claridade

enganadora de uma árvore sem nome.


Depois, o meu pai morreu e as minhas ilusões também.


Quando Dezembro se aproximar do fim,

lançarei pétalas ao vento como se tentasse

semear o perfume do que fui enquanto acreditei.

Talvez o homem volte com outro embrulho secreto,

só para me dizer que esse é o livro que ainda me falta escrever.

Então, juntarei os amigos, os filhos e os netos

numa roda de luz à minha volta e direi do Natal

o que os antigos diziam dos heróis e dos deuses:

foi à sombra deles que nos fizemos homens.

Quando eu partir de vez, lembrem ao menos

a ternura do meu sorriso de menino

quando a meia-noite soava no relógio da sala

e eu acreditava ainda que a felicidade era possível.


      O poema constrói uma reflexão melancólica sobre a perda do sentido humano do Natal. O eu poético evoca os Natais da infância marcados pela magia, contrastando-os com a celebração adulta, dominada por uma festa esvaziada da antiga beleza.


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