A. M. Pires Cabral - Seara

 

Qualquer lugar onde tenha havido trigo

guarda sempre dele algum sinal

que não deixa esquecer a antiga seara

— aquela que ondulava aos ventos de Maio,

igual a um rebanho verde subindo encosta acima,

sem pastor nem cães para o guiar.

(Quem precisa de guias quando é Maio?)

Talvez se trate de uma questão de cheiro.

Ou de algum outro sentido

que ainda está por identificar.

Ou de uma espécie ignorada de memória

que se agarra ao lugar e nele persiste.

Seja o que for,

anda ainda no ar a presença de espigas

mesmo quando o desuso as expulsou

e ervas bravias lhes tomaram o lugar

— e por isso tanto nos magoa

toda a terra de que lavoura alguma

já não extrai o pão.


      Antes de ontem, aqui em Nagosela, pediram-me para levar entre 60 a 70 ovelhas ao curral que distava mais ou menos quilómetro e meio do sitio onde estavam. Disseram que as ovelhas sabiam o caminho e que bastava deixa-las ir. Sozinho, fui atrás. De repente, as da frente viram pasto verde ao longe, fugiram do trilho e todo o rebanho foi atrás. Correram como uma manada de búfalos e eu atrás delas. Hoje, ao ler este poema, que nem é sobre rebanhos, resolvi partilhar. O som das unhas no chão, a poeira, o pau a servir de cajado, os meus berros, a luz do por do sol fizeram outro poema.

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