Maria do Rosário Pedreira - Quase tudo

 


Lembrava-se dele e, por amor, ainda que pensasse

em serpente, diria apenas arabesco; e esconderia

na saia a mordedura quente, a ferida, a marca

de todos os enganos, faria quase tudo

 

por amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria,

e guardaria calados os fantasmas do medo, que são

os donos das maiores verdades. Já de outra vez mentira

 

e por amor haveria de sentar-se à mesa dele

e negar que o amava, porque amá-lo era um engano

ainda maior do que mentir-lhe. E, por amor, punha-se

 

a desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre

a cair da folha, a prolongar o desencontro.

E fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes;

arabescos, ainda que só se lembrasse de serpentes.


      Certa vez, estive a ouvir esta Senhora recitar e pensei comigo 'como é que um ser humano tão pequeno consegue escrever assim?'. Todos somos pequenos, alguns têm muito talento. O poema revela o lado feminino numa certa relação amorosa, onde o amor é um engano mas continua a ser amor. 

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