plágio manhoso do big-bang
a matéria do poema expande, arrefece
tão estranhamente se demora e permanece
semelhando o Universo
o poema é a imagem-espelho de um corpo
sem reflexo: a poesia
oco assimétrico, residual desse princípio
colocada em lugar dubitativo, separada quase sempre
do buraco negro a que chamam literatura
poder-se-á supor que poucos são os poetas
capazes de acelerar partículas
de modo a ver-se não só o que a luz já percorreu
mas a região mais central do nada, o pátio
furioso da potência
e neste lugar de substâncias, de objectos
as palavras são figuras do imundo, coisas que
sobraram do estampido inaugural desse 'dia inicial inteiro
e limpo' que culminou no lugar a menos deste texto
breve logaritmo sem aplicação ou saída
resta ao poeta o embuste
de afirmar o que propende para o infindo
espiar o acesso que cada coisa consente pela fissura do milagre
e dá pelo nome de imprevisto, ou acidente
a criança na rua abrindo o caixote do lixo
onde alguém sem saber depositou o assombro de um
balão de hélio branco ainda cheio
que se soltou e subiu à laia de lua ao fim da tarde
ao pé de casa
a criança pasmou, entristeceu depois
mais tarde lembrou-se: ‘tens de escrever um poema sobre o balão
que voou do lixo e não agarrámos’
um poema é a coisa mais triste que há
e escrevi.
Uma ars poetica com ares de compêndio de físico-química para poesia. O autor compara o poema ao universo arrefecido, separando-o do "buraco negro da literatura" acrescentando que "poucos são os poetas capazes de acelerar partículas". Certo. Anda por aí gente a juntar duas palavras julgando-se poetas e há tanta gente a ler essas duas palavras julgando ser poesia.
1 comentário:
A poesia tornou-se um buraco negro. Como a música «clássica». Ou a arte contemporânea.
Afastou-se, orgulhosa, da gente comum.
Por isso ninguém lê poesia. Só os candidatos a poetas leem poesia.
E ninguém escuta música erudita contemporânea, a não ser nos conservatórios.
É um círculo fechado.
A poesia, aquela que tem alguma coisa a dizer, acontece nas canções de música popular. Dylan é um exemplo. Ou Sérgio Godinho. Ou Caetano Veloso.
Este poema do Miguel-Manso é um buraco negro. Ou quase. O poeta fecha-se no espelho do seu umbigo.
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