Miguel-Manso - a coisa mais triste que há

plágio manhoso do big-bang
a matéria do poema expande, arrefece
tão estranhamente se demora e permanece
semelhando o Universo

o poema é a imagem-espelho de um corpo
sem reflexo: a poesia

oco assimétrico, residual desse princípio
colocada em lugar dubitativo, separada quase sempre
do buraco negro a que chamam literatura

poder-se-á supor que poucos são os poetas
capazes de acelerar partículas
de modo a ver-se não só o que a luz já percorreu
mas a região mais central do nada, o pátio
furioso da potência

e neste lugar de substâncias, de objectos
as palavras são figuras do imundo, coisas que
sobraram do estampido inaugural desse ‘dia inicial inteiro
e limpo’ que culminou no lugar a menos deste texto
breve logaritmo sem aplicação ou saída

resta ao poeta o embuste
de afirmar o que propende para o infindo
espiar o acesso que cada coisa consente pela fissura do milagre
e dá pelo nome de imprevisto, ou acidente
a criança na rua abrindo o caixote do lixo
onde alguém sem saber depositou o assombro de um
balão de hélio branco ainda cheio
que se soltou e subiu à laia de lua ao fim da tarde
ao pé de casa

a criança pasmou, entristeceu depois
mais tarde lembrou-se: ‘tens de escrever um poema sobre o balão
que voou do lixo e não agarrámos’

um poema é a coisa mais triste que há
e escrevi

    in, Santo Súbito


      Miguel-Manso nasceu em Santarém, no ano da revolução, e foi criança em Almeirim. O pai, hoje reformado, era engenheiro agrário e a mãe antropóloga e bibliotecária. Alojado numas águas-furtadas, casa cedida pelo avô, Miguel-Manso alinhavou trabalhos de ocasião como muitos dos jovens no nosso país: exercitou a formação (feita para sossegar os pais) de técnico de biblioteca, foi padeiro em Almeirim, vigilante no Museu do Chiado, responsável pelo Centro de Documentação da Galeria Zé dos Bois, tarefeiro na Ellipse Foundation, porteiro do Hotel des Artistes da Casa d'Os Dias da Água, arrumador da Biblioteca do jornalista e poeta Fernando Assis Pacheco... Tarefas que o deixavam escrever. "Dêem-me um quartinho e uma mesinha e eu escrevo, que é o que quero". Ao lermos os seus versos reconhecemos a qualidade surpreendente da sua escrita.

Sem comentários:

Arquivo do blogue