Interpretações


há quem pretenda fazer do mundo, de um texto, ou de uma obra, o pretexto para um quase interminável exercício de interpretação. por debaixo de cada palavra esconder-se-ia um sentido mais profundo, por debaixo de cada folha outra folha que exigiria um aprofundamento. e depois outra folha, e outra.

o mundo ou o livro tornar-se-iam ocasião para exercícios de interpretação assentes na promessa ou na possibilidade de uma revelação última. este é o movimento de descascar a cebola. depois de cada camada, outra camada, e outra camada, um pouco mais próxima do núcleo, mais próxima do centro, do sentido, da verdade, da essência.

mas este é um exercício falacioso: o descascar da cebola esgota-se no simples processo. camada após camada, não há nada que não pudesse ser visto na camada anterior, apenas cebola. e o centro não traz a verdade ou o sentido últimos, apenas mais cebola. e depois desta, nada. nem sequer lágrimas.

H. C. Cancela

Nota: Uma obra não vale só per si. A fruição do receptor é tanto maior quanto ele for trabalhador. É na pluri-significação dos motivos, na gruta psicológica e filosófica que evitamos o 'boi a ver o palácio'. Robert Zimmerman denunciou o problema em 'The ballad of a thin man', 'You walk into the room with your pencil in your hand, you see somebody naked and you say, 'Who is that man?' You try so hard, but you don't understand. Just what you'll say when you get home.

Because something is happening here
But you don't know what it is
Do you, Mister Jones?

1 comentário:

David disse...

Este texto não pode ser lido literalmente. Senão, não passava de uma estupidez. Mas pode pretender significar que é ilusória a suposta possibilidade de uma revelação última e definitiva. E também que a obsessão em esgotar um texto ou o universo
numa rede simbólica totalitária - será uma tarefa vã. É bom deixar o texto ou a vida na sua própria respiração sem querer à força toda aprisioná-los nos nossos conceitos sempre finitos.

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