Álvaro Mutis - Se ouvires correr a água

 


Se ouvires correr a água nas levadas,

o seu sono manso passar entre musgos e penumbras,

apagado o som de algo

que tende a demorar-se na sombra vegetal.

Se tiveres a sorte e guardares esse instante

com a tremura incessante dos fetos,

com o limo atónito a debater-se

no leito imutável e sempre em viagem.

Se tiveres a paciência do seixo,

a sua voz quieta, o seu tom sem arestas,

e aguardares a chegada da luz,

é bom que saibas que ali te vão chamar

com um nome jamais antes pronunciado.

Toda a difícil harmonia do mundo

é provável que te seja então revelada,

mas só dessa vez.

Saberás, acaso, decifrá-la no rumor da água

que sem remédio se evade, para sempre?


  Original:


Si oyes correr el agua en las acequias,

su manso sueño pasar entre penumbras y musgos,

con el apagado sonido de algo

que tiende a demorarse en la sombra vegetal.

Si tienes suerte y preservas ese instante

con el temblor de los helechos que no cesa,

con el atónito limo que se debate

en el cauce inmutable y siempre en viaje.

Si tienes la paciencia del guijarro,

su voz callada, su gris acento sin aristas,

y aguardas hasta que la luz haga su entrada,

es bueno que sepas que allí van a llamarte

con un nombre nunca antes pronunciado.

Toda la ardua armonía del mundo

es probable que entonces te sea revelada,

pero sólo por esa vez.

¿Sabrás, acaso, descifrarla en el rumor del agua

que se evade sin remedio y para siempre?


      O poema evoca a passagem do tempo e a memória por meio da imagem da água que corre silenciosa. As levadas (acequias) funcionam como metáfora do destino e da persistência da vida, enquanto o eu lírico observa o fluxo inevitável que leva lembranças e esperanças. A linguagem contida e meditativa reforça a sensação de melancolia, destacando a relação entre natureza, perda e contemplação do próprio caminho existencial.


Sem comentários:

Arquivo do blogue